sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Uma voz ao telefone, Sergio Duarte

Marilda era telefonista. Hoje em dia já não existem essas
moças simpáticas, que passavam o dia inteiro sentadas
diante de uma mesa com inúmeros cabos ligados a terminais
colocados em enorme painel vertical diante delas, com
fones nos ouvidos e bocal para comunicar-se com os
assinantes. O conjunto se chamava “quadro de distribuição”.
A cada chamada, a telefonista ouvia do cliente o número
com o qual queria comunicar-se e localizava no painel a
conexão correspondente, colocando-o em contato com o
interlocutor, às vezes a muitos quilômetros de distância,
até onde chegassem os fios da rede telefônica. Não havia
tempo para distrações nem fantasias durante as horas de
trabalho; as chamadas eram constantes, as conexões ainda
precárias; o trabalho da telefonista era essencial para o
bom funcionamento do sistema.
Nos dias de hoje, qualquer pessoa leva no bolso ou
na bolsa seu telefone celular e apertando pouco mais de
meia dúzia de botões é capaz de falar com alguém do
outro lado do mundo, enquanto caminha tranqüilamente
pela rua, viaja de ônibus ou saboreia sua cerveja no bar.
Marilda, no entanto, tinha de ficar sentada em seu posto
oito horas por dia, e por vezes, no intervalo entre as
chamadas, divertia-se ouvindo parte das conversas entre
seus clientes. Não era bisbilhoteira, e nem especialmente
curiosa; para ela era apenas diversão inocente, que lhe
permitia (literalmente) desligar-se de sua monótona
ocupação.
Além disso, a nossa telefonista tinha bons sentimentos
e era naturalmente atenciosa e solícita. Foi assim, por
exemplo, que ao ouvir certo dia azeda discussão entre um
casal entrou sem ser convidada na conversa e conseguiu
acalmar os litigantes. Em seguida, propôs visitá-los depois
do trabalho e tornou-se confidente e conselheira; sua
companhia foi decisiva para aplainar as dificuldades
conjugais entre ambos e dar estabilidade àquele
relacionamento, que ameaçava transformar-se em desastre
irremediável. Mas a partir da reconciliação, já não
precisavam mais da dedicada telefonista. Em breve ela
percebeu que não era mais recebida com o mesmo carinho
e entusiasmo. Talvez conhecesse demasiadamente os
pontos fracos de cada um, seus receios e segredos íntimos;
talvez ambos se sentissem demasiadamente vulneráveis
diante dela. As visitas foram rareando, e Marilda acabou
por deixar de procurá-los.
Não foi essa a única vez em que os bons sentimentos
da telefonista lhe renderam nada mais do que decepção.
Mesmo assim, ao ouvir de outra feita duas mulheres que
conversavam ao telefone, sentiu-se obrigada a interferir.
Uma delas, que a julgar pela voz parecia sem dúvida muito
jovem, queixava-se amargamente da vida, dizia-se infeliz
em seu lar e planejava fugir de casa. Marilda encontrou
meio de comunicar-se com a moça, que era ainda
adolescente, e ajudou-a a encontrar apoio e aconchego no
seio da família. Apesar das decepções anteriores, cultivou
também a amizade da jovem, que se chamava Dorinha e
era instável e rebelde, cheia de dúvidas e perplexidades. A
ajuda foi decisiva para que a moça voltasse a tentar ajustarse
ao mundo que a rodeava. Mas à medida que se tornava
adulta, as pressões foram crescendo. Dorinha acabou
escapando novamente do mundo da família e dos amigos,
esquivando-se do contato com todos. Com o passar dos
anos, sumiu completamente. Ninguém mais sabia por onde
ela andava, o que estaria fazendo. Aos poucos a família
também afastou da telefonista, mas também essa dor passou,
e ela continuou dedicada a seu ofício. Tomara, no entanto,
a decisão de não mais intrometer-se nas vidas dos clientes
da companhia telefônica.
Sua decepção com o desaparecimento de Dorinha a
fez deixar de importar-se, ao menos por algum tempo, do
universo de angústias e sofrimentos individuais que existia
mais além do emaranhado de fios da mesa telefônica.
Além disso, começava a preocupar-se seriamente com
sua própria vida. Era solteira e sozinha, órfã de pai e mãe
desde muito cedo. Fora criada pela única tia, mulher
bondosa que agora vivia em cidade distante. Em seu tipo
de trabalho não tinha muitas oportunidades de conversar
e formar algum relacionamento com as colegas; todas
passavam as horas de seu turno ocupadas com os fios e
terminais, fazendo e recebendo chamadas constantes que
impossibilitavam a conversação entre si. Mesmo assim,
aproximou-se de outra telefonista, moça reservada mas de
sorriso simpático e acolhedor, que tomava a mesma
condução de volta ao bairro em que ambas moravam. No
ônibus, conversavam sobre suas vidas, esperanças e temores.
Joana – assim se chamava sua nova amiga – queria estudar,
aperfeiçoar-se, melhorar de vida, mas era de família pobre
e ajudava no sustento dos pais idosos. Marilda contribuiu
com estímulo, solidariedade, palavras amigas nas horas de
desespero. Joana estudou, chegou ao curso superior,
formou-se e obteve sucesso profissional. A ascensão social
a fez deixar de lado a amiga mais humilde, que a apoiara
nos tempos difíceis.
Os anos se passaram. Morrera a tia solteira, única
parente que conhecia. A evolução da tecnologia das
comunicações fez com que as antigas mesas telefônicas
fossem sendo substituídas por aparelhamento mais moderno
que dispensava o trabalho das telefonistas. Nos escritórios,
as pessoas que atendiam os telefones já não eram
simplesmente telefonistas: eram necessárias qualificações
de verdadeira secretária. Os empregadores exigiam grau
maior de escolaridade, redação própria, boa apresentação,
às vezes até o domínio de línguas estrangeiras. Depois
vieram a secretária eletrônica, a resposta automática, os
recados gravados. Marilda se viu perambulando de empresa
em empresa, sem conseguir satisfazer completamente as
novas exigências. Trabalhava em ocupações secundárias,
servia café, levava papéis de sala em sala.
Ao peso das decepções com os relacionamentos de
amizade somaram-se outros desapontamentos e rejeições
afetivas. Numa palavra, ela continuava sozinha, e mais que
sozinha, solitária. A depressão foi chegando aos poucos.
Encontrava motivos para não cuidar da aparência, para
não sair do modesto apartamento em que morava, para
não procurar novos relacionamentos. Ficava deitada durante
horas sem pensar em nada a não ser em seus próprios
fracassos e tristezas. Certo dia resolveu não ir trabalhar.
Desculpou-se pelo telefone, no dia seguinte deu nova
desculpa, e acabou perdendo o emprego.
Sem ânimo, sentindo-se velha, feia e inútil, começou
a ter pensamentos mórbidos. Passou a meditar seriamente
sobre a possibilidade de acabar com a própria vida. Numa
noite de insônia, achou que estava perto de criar coragem
suficiente.
Era ainda madrugada quando o telefone tocou. (Claro,
nessa altura a maioria das casas já tinha telefone). – Marilda?
Aqui é a Dorinha… lembra-se de mim? Foi há muito tempo,
mas eu não me esqueci de você! Sofri muito depois que
fugi de casa, tive muitas dificuldades e problemas, mas
hoje estou muito feliz, você não imagina como. Infelizmente
o lugar onde estou é muito longe daqui, não tenho maneira
de visitar você. Custei a descobrir seu telefone, às vezes
ficava sabendo onde você trabalhava, mas quando ligava
você já não estava mais lá. Mas me diga, quero muito
saber como está, o que está fazendo…
A pobre ex-telefonista chorou muito, contanto suas
mágoas àquela interlocutora inesperada que surgia quase
como uma dádiva. Ouviu a voz de Dorinha que a
consolava, animando-a da mesma maneira com que ela
própria havia estimulado a desesperada adolescente, anos
atrás. Era o mesmo carinho, a mesma preocupação
desinteressada que servira de amparo a outras pessoas, o
mesmo tom de sincero desejo de ajudar. A conversa foi
longa, Marilda nem viu o sol nascer.
Outro sol, no entanto, nascera dentro dela. Os
telefonemas se repetiam diariamente. Os pensamentos
negros foram saindo de sua mente. Reuniu as poucas
economias que conseguira juntar (“para o meu enterro”,
pensara) e matriculou-se num curso de secretária. Com o
estímulo constante da voz da amiga, aplicou-se em aprender
as novas habilidades necessárias para disputar seu lugar
no mercado de trabalho. Passou a freqüentar o salão de
beleza, pintou os cabelos, cuidou das mãos e dos pés,
voltou a escolher roupas adequadas. Não podia pagar
muito, mas até nisso a voz a ajudava: dava conselhos sobre
vestuário, etiqueta, conduta profissional.
Finalmente, a nova Marilda, confiante e bem
preparada, lançou-se em busca de emprego e estabilidade.
Não demorou a encontrar colocação adequada, firmou-se
em suas atribuições, recebeu elogios, acabou tendo
aumentos de salário em retribuição a suas qualidades e
dedicação. A vida voltou a ser agradável, o enorme peso
que todos os dias parecia esmagá-la desapareceu. Agora
ela sorria, divertia-se, voltava a ser o que sempre fora.
Somente uma sombra a entristecia: Dorinha deixou de
telefonar. Às vezes Marilda pensava naquela voz tão meiga,
tão amiga, que soava a seus ouvidos quase como se viesse
de um anjo bom que a amava com um amor desconhecido.
Por que motivo já não a escutava? Que teria acontecido?
Mas ela agora tinha outros interesses, estava até flertando
com um colega de trabalho, já passando a meia-idade,
mas ainda ativo e parecendo ter boas intenções.
A falta das chamadas, entretanto, ainda a incomodava.
Durante a fase de sua recuperação para a vida,
denominação que ela própria dava àquela etapa vencida,
a carga de seus problemas era forte demais, e ela nem
sequer pensara em pedir o telefone e o endereço da moça.
Quando o fez, já livre de suas amarguras, a amiga se
esquivara, dizendo-lhe que não se preocupasse, que seus
pensamentos a acompanhariam sempre, que o lugar onde
estava era muito distante, um telefonema exigiria horas de
espera e seria muito caro. (Ainda não havia chegado a era
do DDD e do DDI e do barateamento das tarifas
internacionais para qualquer lugar).
Mas quando as ligações cessaram por completo,
Marilda começou a procurar uma forma de localizá-la. A
família havia se mudado da casa onde havia morado, e foi
preciso um verdadeiro trabalho de investigação para que
ela finalmente conseguisse saber o novo endereço dos pais
da jovem. E em certo domingo, viajou de ônibus a outra
cidade, no interior do estado, chegando finalmente à casa
que procurava. A mãe de Dorinha abriu-lhe a porta e
recebeu-a com afeto. O pai, também idoso, veio logo à
sala, reconhecendo-a e recordando a antiga amizade.
Marilda não chegou a contar os telefonemas que tinha
recebido, o quanto aquela presença, aquela voz, ainda
que somente pelo telefone, tinha representado para ela,
como sua vida havia mudado sob o influxo da ternura que
lhe chegava todos os dias. - Onde está ela, quero revê-la,
preciso agradecer tudo o que fez por mim. Ela me devolveu
à vida, que eu estava prestes a abandonar…
Havia lágrimas em seus olhos, mas também nos olhos
dos dois velhos que a ouviam atentamente, sem
compreender bem o que ela queria dizer. Foi a mãe de
Dorinha quem quebrou o silêncio.
– Minha filha, você foi tão boa para ela… Graças a
você, ela voltou também à vida, quando tinha apenas
dezesseis anos. Eu a via desaparecendo, morrendo em vida,
indiferente a tudo, incapaz de reagir. Você a ajudou,
transformou-a, trouxe-a de volta para nós. Foram poucos
anos de convívio, porque ela finalmente resolveu tomar o
controle de sua vida. Tinha vinte anos quando nos disse
que ia morar na capital, uma amiga que morava lá lhe
prometera ajudar a encontrar emprego, ia em busca de sua
felicidade, daria notícias, nós não precisávamos nos
preocupar.
A mãe suspirou e parou de falar. O pai retomou a
narrativa.
– Ela passou bastante tempo sem dar notícias. Nós
nos mudamos, não sabíamos por onde andava. Certo dia,
recebemos uma carta em que pedia desculpas, dizia que
estava bem, que estava bem empregada, que viria nos
visitar quando pudesse. Também falava em você, nunca
se esqueceu do que você fez por ela. Escrevia pouco, mas
sempre tínhamos notícias dela. Dizia que somente iria
procurar você quando pudesse pagar o bem que você tinha
feito. Só então se sentiria inteiramente feliz.
O velho parou de falar, no esforço para dominar a
emoção. Depois, prosseguiu:
– Dorinha ia fazer vinte e cinco anos quando a amiga
nos avisou. Tinham descoberto um tumor maligno. Ela
durou somente três meses. No dia de hoje faz exatamente
vinte anos que ela se foi. Não sei onde está agora, mas
gosto de pensar que está feliz.
Marilda tomou as mãos dos dois velhos. As dela
também tremiam.
– Pode ter certeza de que ela está feliz. Eu sei.