sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Guardião da chama, Olavo Romano

“É da água, é do fogo; é do princípio do mundo.”
(Antônio Silvério – Mestre Ferreiro)
Aqui por estas bandas, cinqüenta léguas em volta, quem
procura ferramenta de corte pra qualquer serviço, ferragem
pra carro de boi ou carrinho de carneiro, candeia do mais
fino gosto e feitio, não carece perder tempo batendo perna
à toa: basta ir atrás do único ferreiro formado da região –
Antônio Silvério Alves, o afamado Seu Antônio.
O nome da família é grande e anda longe. A têmpera
corre nas veias, no sangue rubro de ferro e fogo. Do avô
materno, José Mota Dias, lá no Carmo, que é do Paranaíba,
passou para o neto Joaquim Silvério Filho, do Ibiá. Na
oficina do irmão, Seu Antonio Silvério enfrentou malho e
bigorna dos 17 aos 34 anos. E saiu “ferreiro formado”.
Chegou aqui no Araxá, “sem um tostão de
indenização e sem oficina própria”. Mas trazia nas mãos,
como uma jóia, seu bem mais precioso, dom que o
acompanha dia e noite desde o nascimento: o domínio do
fogo, da água e do ar, que lhe permite a mestria de esculpir
o ferro com força, paciência e habilidade.
Na primeira oficina, do acanhado tamanho que os
cobres permitiam, deixava seu suor cotidiano, fiel oferenda
ao fogo que nunca pode se apagar. O sustento, mesmo,
vinha do DER, onde malhou por mais de 20 anos. A oficina
atual, 40 anos no mesmo endereço, é bem mais ampla e
ganhou espaço para o luxo da serralheria artística. De sua
forja toda hora sai foice e marcador de gado. Mas nosso
mestre-ferreiro sabe (e pode) muito mais.
Na lida, longa e comprida, foi forjando ferramentas
(compassos e esquadros pra exatidões; tenazes, talhadeiras,
martelos e marretas de diversos pesos ...), com as quais
fabrica todas as outras . São ferramentas-matrizes, geradoras
de incontáveis foices, facões, enxadas e enxadões que
cantam e tinem pelas roças e campos da redondeza. Roçam
mato, limpam pasto, fazem cova caprichada onde deitam,
com carinho, abençoada semente. Capinam toda a lavoura
que, prosperando viçosa, promete boa colheita.
Então, o carro-de-boi ou carrinho-de-carneiro,
atopetado e gemente, ferrado de aro e cravo, enche tulhas
e paióis feitos por bons carapinas que, a poder do
competente manejo do machado, da serra e do enxó,
formão, talhadeira e plaina, assentaram dobradiça e
fechadura, criaram abrigo seguro em que o homem deposita
com gratidão e louvor o sustento da família.
No aconchego da casa, há facas bem afiadas para
qualquer serventia. Os homens, moços ou velhos, não
dispensam canivete para descascar fruta, picar fumo famoso,
alisar sedosa palha, cortar couro ou madeira, até um caco
de cuia para arte ou brincadeira, diversão da criançada.
Na cozinha, a colher de ferro amassa feijão tenro e
gostoso que cheira por toda a casa, anunciando a hortas,
terreiros e currais a hora do de-comer.
O ofício é como tocha, passada de mão em mão.
Por isso, “Toninho” Silvério faz profissão de fé: “coloquei
no meu filho o nome Antonio Silvério Neto e, se Deus quiser,
nós vamos continuar a tradição da família”. É só aproveitar
– com o compromisso de honra – a marca “AS”. É assinatura
que firma, a ferro e fogo, em cada peça, a merecida fama
deste último ferreiro em atividade na região. O herdeiro,
artista serralheiro de reconhecido talento, cumpre os rigores
da tradição completando o conhecimento das têmperas.
Só então receberá, do pai-sacerdote, a sagração como
“ferreiro formado”.
Fiel a sua missão, Mestre Antônio Silvério conduz, no
seu altar-oficina, secreto ritual de iniciação e permanência.
A cerimônia começa pelo fogo da forja, alimentado de
madeira e ar. O velho fole, porém, não sopra mais.
Aposentado pela eletricidade, filha mais nova da água, é
como pulmão inerte.
O ferro, nascido de terra e fogo, está à vontade em
casa. Seguro por tenaz, que também é ferro puro, recebe
calor até o mais completo rubor. Malhado, marretado,
forjado, é, afinal, moldado, em idas e vindas da bigorna
ao fogo, do fogo à bigorna, até ganhar, enfim, forma e
feição.
Houve época, no começo dos tempos, em que os
instrumentos do culto – malho, marreta, tenaz e bigorna –
só existiam no sonho e no desejo do Criador. Trazidas ao
mundo dos mortais por obra, arte e graça do Ferreiro-
Mestre, viraram matrizes de numerosa e variada família.
Ferramenta, para ganhar corte dos bons, pede uso de
esmeril. Agora, têmpera, para todos os casos, é sempre a
poder do choque de fogo e água .
Na ferraria, tudo tem o calor da beleza: o movimento
das chamas, línguas vívidas lançando chispas,o atento olhar
do ferreiro, gestos precisos combinando força e arte, no
transitório rubor em que o metal se deixa moldar. Se é
cravo para ferrar carro-de-boi, o forjar é um bailado. Frente
à peça, o mestre e seu ajudante levantam os malhos bem
alto, reverentemente preparados. Então, batem e levantam
alternadamente seus grandes martelos, em cadência de
precisa coreografia. Finalmente, na seqüência da última
batida, o mestre bate o malho na bigorna, enquanto o
outro pára seu malho no ar. Quem reparar com atenção o
arredondado do cravo, tão perfeitamente uniforme, talvez
possa perceber, por trás da contida forma, o pulsar de
secreta harmonia – imagem só a poucos revelada de pausas,
bemóis e sustenidos que os ferreiros-bailarinos, no batee-
levanta dos braços, no gingado de seus corpos
arrodeando a bigorna, acabaram por moldar em metal bruto.
Nesses tempos em que os excluídos se organizam e
vão às ruas portando cartazes e reivindicando ruidosamente
seus direitos, Seu Antônio, quase 60 anos de prática nas
costas, está lá no seu canto, calado e quieto. Mas já foi um
pouco de tudo. Antes dos 40, fichado como um serviçal
qualquer, um “sem profissão” e, também, “sem oficina”.
Antes dos 80, um injustiçado, um “sem reconhecimento”,
que só pôde expressar mínima parte de sua capacidade de
trabalho. O gradativo sumiço da freguesia, cada vez mais
rara nos últimos 20 anos, deixou-lhe na boca um travo de
amargura e solidão. Mestre Antônio Silvério faz parte do
grupo dos que, se entregando a determinado ofício por
gosto ou vocação, vivem insatisfeitos e acabam
profissionalmente desajustados. Assim, não só ele como
Dona Vani, sua esposa, e seu filho Toninho são credores
da estima e do carinho da comunidade. A primeira parcela
para a quitação desta dívida social e afetiva é o resgate da
Ferraria, atendendo rigorosamente suas orientações. É uma
justa e merecida homenagem, com a qual se reconhece
publicamente o valor deste nosso último (e único) Ferreiro
Mestre. Deste valoroso guardião da Ferraria, a cujo poder
se curvam docilmente o fogo, a água, o ar e a madeira.
Juntos, em harmônica cooperação, eles imortalizam, na
têmpera do ferro, a incomparável marca dessa rara figura
de homem e profissional que é Mestre Antônio Silvério, o
afamado “AS” que agora vive também no grato e amoroso
coração de nossa gente.