sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Não mais existe escola para datilógrafo, Manoel Lobato

Já possuí computador. Não mais quero envolver-me com
essa engenhoca, cuja personalidade tem metade de coisa
e o resto de gente. Volto à minha antiga máquina de
escrever, tekne 3, Olivetti, elétrica, feminina, mais humana,
menos materialista. Meu computador, além de bissexual,
pretende ser arremedo de Cristo. O Mestre foi divino e
humano ao mesmo tempo, teândrico, tinha duas vontades,
duas mentes distintas numa só cabeça.
Não quero mais polemizar com esse estrupício, cuja
arrogância o levou a me perguntar: “Você sabe o que é
hipóstase?” Nem sequer lhe dei resposta. Explico: conheço
o vocábulo desde meus tempos de universitário de farmácia
no Rio de Janeiro, então a capital da República. Faz mais
de meio século. Ensinaram-me que, em microbiologia,
hipóstase é acúmulo de urina, produzindo sedimento. Os
teólogos usam esta palavra para qualificar a natureza de
Jesus. Muitas pessoas acreditam que o Messias seja mesmo
hipostático. Fé não depende de raciocínio lógico. Creio
que o computador, que foi de minha propriedade, tenha
sua engrenagem ativada por energia de elétrons ou
neurônios, sendo animado por uma espécie de espírito,
essência, pneuma, psique. Aceito o mistério. Faço analogia
entre minha crença e a dos prosélitos que seguem o
cristianismo.
Outro motivo que me levou a abandonar o
computador é sua queda por mim. Gosto de descobrir
morfologias, logo sei que o termo “afeto” tanto pode
significar sentimento de alma quanto pode designar um
corpo com afecção. Afeto pode ser substantivo ou adjetivo.
Volto à velha estima por minha máquina humanizada
pelo convívio, rupturas e remendos. Tenho dificuldades
em encontrar fita no comércio para substituir a seca, sem
tinta, gasta, que ainda está entre os ganchos e dividida
entre os carretéis.
O computador me declarava amor com jeito de dândi,
um tanto adamado, esbanjando ademanes dúbias. Quase
pedi ajuda ao psicólogo Segismundo Madureira. Seria difícil
convencer o profissional de saúde a ouvir as confidências
do aparelho semi-humano, coisificado e anímico em uma
só entidade. Há psiquiatra veterinário. Deve haver psicólogo
para analisar esse tipo de ser – hibridismo da modernidade,
matéria grávida pelo imo de luz – no entanto, evito cizânias,
por isso desprezo qualquer interlocutor quando o diálogo
descamba para equívocos, desencontros, falta de encanto.
Ainda penso em conversar com Segismundo Madureira,
embora ele não tenha especialidade em desvios de conduta
em computador.
Não há mais técnicos em máquina de escrever nem
sequer existem escolas de datilografia. Minha companheira
deve ser a última vivente na face do planeta. Por causa
disso, volto a declarar-lhe amor, sem mencionar o
neoplatonismo, uma de suas fixações psíquicas, resquícios
de sua vida pregressa. Quando me aproximo da Olivetti,
ela começa a tremer. Faço-lhe carinho, meto-lhe a folha de
papel em branco na fenda própria, ajeito as margens, mexo
no rolo, ligo a eletricidade. Olivetti escreve sozinha. As
teclas se movimentam sem que eu lhes encoste a ponta
dos dedos. Também tremo diante dela. Somos dois corpos
trêmulos, somos duas almas aflitas.
Bilhete dela: “Não existo. Você vê apenas a imagem
daquilo que sou, mas não conhece meu âmago, a parte
numênica, o sopro inaugural. Você é um que poderá coisar
a coisa, sem descobrir a coisa-em-si. Você sabe que sou
fenômeno. Nunca, porém, entenderá o sentido de minha
vida”.
Vou procurar o psicólogo Segismundo Madureira, a
fim de que ele converse com minha Olivetti. Talvez ela
precise de tratamento. Seus problemas aparecem em tipos
diversos. Ela deve ter alguns parafusos frouxos.