sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Aos leitores:


Esta é a terceira edição do Livro de Graça na Praça, versão 2006,
com a participação de dezoito autores. Éramos quatro, no começo, fomos nove em 2005, com a distribuição de 2.600 livros, aproximadamente, incluídas obras de outras editoras, associadas na ocasião.
Tudo tem sido feito com o exclusivo objetivo de contribuir para a recuperação de nossa cultura e do hábito de leitura.
Por isso, e apenas por isso, não são calculados sacrifícios pessoais nem custos financeiros.
Registramos agradecimento às entidades que nos apoiaram:
Associação de Aposentados do Banco do Brasil (AFA),
Banco Mercantil do Brasil,
Belotur,
Cooperforte e
Mazza Edições.
Aos poucos o movimento vai se alastrando. Agora, para
ilustrar nosso trabalho, a apresentação deste “Ócios e Ofícios”
é feita por um grande poeta cearense – raro caso em que a
sobremesa é servida antes do prato principal.

José Mauro da Costa
Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, aos 10 de setembro de 2006.

Apresentação

Por pura engenhosidade,
De denodados senhores,
Mestres em literatura,
Todos eles escritores,
Este volume entra em cena,
E o que deseja na arena,
É agradar seus leitores.
Contém contos variados,
De bravura e fantasia,
De profissões do passado,
Já extintas hoje em dia,
Cumpridas com habilidade,
Relembradas com saudade,
Narradas com maestria.
Cada fato relatado,
Um pouco do autor revela,
Seu estilo, seu enredo,
O seu cuidado e cautela
Com a precisão do texto
E a clareza do contexto,
Na frase polida e bela.
Quem já não ouviu falar
No amolador paciente,
Que amolava suas facas,
De maneira eficiente,
Para cozinha, açougueiro,
Pra capar touro e carneiro,
E por vezes também gente?
Saudosos tempos aqueles,
Do alfaiate, da modista,
E de quando o farmacêutico
Era chamado droguista.
E parabéns, homenagens,
Se passavam por mensagens
Do velho telegrafista.
Belo ofício o do ferreiro,
Que de forma artesanal,
Fabricava faca e foice,
Roçadeira e castiçal,
Espeto de todo porte,
Mas por capricho da sorte,
Seu espeto era de pau.
Mais casos interessantes
Este compêndio contém,
Como histórias de tropeiros
E de parteira também,
Que sem medir empecilho,
Salvava a mãe e o filho,
Sem cobrar nenhum vintém.
Por fim lembro Castro Alves,
Quando prega a difusão
Do livro como veículo
Do saber, da instrução,
Pois livro é como candeia,
E aquele que o manuseia,
Recebe iluminação.
Então juntem-se os autores,
Sem discussão, arruaça
E que com muita alegria,
Enfim a festa se faça,
Em praça cheia de gente,
Com livro como presente,

Distribuído de graça.
Livro de graça na praça,
Dado assim, de mão em mão,
Que seja cada exemplar,
Desta mais nova edição,
Um incentivo à leitura
E à difusão da cultura,
Para o bem desta Nação.

Edésio Batista
Membro da Academia dos Cordelistas do Crato
Cadeira nº 5

Revelações, Arthur Vianna

Não existe nada de novo, exceto aquilo que se esqueceu.
(Mademoiselle Bertin)

No porto de Santos, centenas de pessoas aguardavam a
chegada do navio. Da pequena janela redonda, rente à
linha d‘água, João Pedro Pires deixava as lágrimas caírem
a gosto. Não sentia tristeza. Mas o sentimento que tomava
conta de seu coração também não era de alegria. Há duas
horas ouvira o chamado para o desembarque e a terra
firme parecia ainda distante. Mantinha junto a si a mala e
o saco de roupas. No bolso interno do casaco, os
documentos e o dinheiro. Sua mente revia cada pertence.
Não, ele tinha certeza que não esquecera nada no beliche
que ocupara na terceira classe do navio. Foram 34 noites
dividindo o cômodo com outros 50 compatriotas. A
lembrança do velho que emprestara um ferro para que ele
pudesse desamarrotar suas roupas provocou-lhe um quase
sorriso. Ele agradecera a gentileza, mas o velho insistiu
tanto que João Pedro não teve outro remédio se não aceitar
e agradecer. Pois não é que, mesmo sem brasa, o ferro
conseguiu dar um jeito na roupa que ele havia separado
para o desembarque? “O brasileiro coloca muito valor ao
bem vestir” – justificara o companheiro de viagem.
Como que em um passe de mágica, o navio já se
encontrava junto ao cais. João deixou o pequeno quarto
em que havia entrado à cata de uma janela e seguiu pelos
intermináveis e estreitos corredores do navio. Subiu as
escadas que levavam ao convés e sentiu o cheiro do Brasil
pela primeira vez. Era um cheiro diferente, quente. Na parte
de cima, os marinheiros gritavam indicando o caminho
para centenas de pessoas que surgiam por todo o lado.
Alguns levavam sacos enormes, outros uma pequena trouxa.
Os olhos de João Pedro ardiam com a claridade. Sem
entender exatamente para onde seguir, ele acompanhava
a corrente. A certa altura, a multidão foi se afunilando,
dando lugar a uma só fila.
De sua posição, já avistava os agentes da imigração.
Instintivamente colocou a mão no bolso para, mais uma
vez, certificar se lá estavam os documentos que recebera
das autoridades brasileiras em Lisboa. Sim, estavam lá. E,
ao chegar a sua hora, João Pedro Pires abriu o lenço e
entregou os papéis ao oficial que estava sentado. O
brasileiro deu uma rápida olhada nos documentos, ficou
com um papel e bateu o carimbo no outro, devolvendo-o
ao agora mais novo imigrante português no Brasil. Só
naquele ano de 1910, soube mais tarde, cerca de 30 mil
compatriotas haviam escolhido o Brasil para nova morada.
Assim como seus companheiros de viagem, foi levado
até a Estação e lá embarcou no trem em direção a São
Paulo. Na capital paulista, seguiu direto até a Hospedaria
de Imigrantes do Brás, onde teria direito a comida, cama,
atendimento médico e ainda auxílio na busca de uma
colocação. Filho de pobres camponeses da região de
Penalva do Castelo, próximo a Viseu e junto ao Rio Dão,
ele não teve muitas oportunidades de freqüentar escolas.
Mas, graças à sua mãe, aprendera a ler e escrever ainda
bem cedo. Todas as semanas, João Pedro acompanhava
sua mãe de Trancozelos até Penalva, onde ela entregava
os cestos que trançava em casa. Enquanto ela conversava
com os negociantes e fazia as compras, o menino aprendia
o bê-a-bá na Igreja da Misericórdia.
Em seu primeiro dia de Brasil, João não saiu da
Hospedaria. Ficou lá, conversando com outros imigrantes
e olhando a cidade pelas janelas da imensa construção,
capaz de abrigar até quatro mil estrangeiros.
No grande salão de entrada havia vários jornais e
revistas. João Pedro pegou o Correio Paulistano e, ao ler a
primeira notícia, sentiu correr pelo corpo uma sensação
gostosa de felicidade e esperança. A sua reação tinha uma
explicação: mesmo longe de sua terra, estando em outro
continente, ele conseguiria ler e falar a única língua que
conhecia além do minhoto. E assim, sem piscar, leu todas
as notícias e todos os anúncios. Antes de ir para a cama,
levou consigo vários exemplares de revistas e jornais
brasileiros.
No dia seguinte, João Pedro começou a consultar as
possibilidades de emprego oferecidas pela Hospedaria. Não
eram poucas, mas a grande maioria o levaria de volta ao
campo, para o trabalho na lavoura ou na pecuária. Ele
gostava do campo, mas o que levou aquele rapaz de 19
anos a deixar Portugal havia sido exatamente a vontade
de mudar, deixar os tratos com as ovelhas, os cuidados
com a roça e o trabalho na fabricação de queijo. Para ele,
o melhor seria um balcão de loja ou mesmo um lugar na
indústria. E, claro, nada disso deveria faltar numa cidade
de 250 mil habitantes como São Paulo. Mas o que ele não
sabia era que o setor de empregos da Hospedaria já tinha
um plano para os portugueses chegados de véspera.
Ninguém era obrigado a aceitar o emprego oferecido, tinha
explicado o funcionário, mas o objetivo era aproveitar a
experiência de cada um em seu país de origem.
João Pedro resolveu encarar a situação e perguntou
se poderia aguardar uma outra colocação. Foi atendido e
lá ficou até completar oito dias, prazo fatal para manter
cama e comida por conta do Departamento de Terras,
Colonização e Imigração do Estado de São Paulo. Durante
o período, aproveitou para pesquisar, primeiro o entorno
da região e depois pela cidade afora. Quando encontrava
um estabelecimento comercial no jeito, entrava e perguntava
se precisavam de empregados. A procura era tanta que
algumas lojas colocavam do lado de fora o desagradável
Não há vagas. Nem sempre era fácil sair da Hospedaria,
sendo preciso comprovar a busca de emprego.
No chuvoso dia 8 de março João Pedro Pires foi
chamado à Administração. Com uma carta de
recomendação do Governo do Estado, João Pedro deixa a
Hospedaria de Imigrantes do Brás. De sua já diminuta
bagagem, faltavam dois pares de calças e um chapéu preto,
este último presente de seu avô Feliciano. As roupas
simplesmente sumiram. Mas ele acrescentou a seus
pertences uma revista brasileira, editada no Rio de Janeiro.
Na revista Fon-Fon, um anúncio chamara a atenção do
português:

Ganhe dinheiro sem patrão, sem horário
e trabalhando ao ar livre
Adquira uma Máquina de Fotografar e Revelar
(modelo Bernardi)
A maravilha do Século XX
.......................................................
Naquela tarde de abril de 1964, Pedro Pedra descia a
Cristóvão Colombo em direção a casa de seu avô. No
quarteirão do Supermercado ServBem deu de cara com o
Vlady, que apontou para dois caminhões carregados de
bananas que passavam pela praça e emendou:
– Olha só, Pedro, os latifundiários do interior já estão
pagando o quinto aos gorilas de Brasília.
– É verdade, companheiro. Perigoso é a gente
escorregar nas cascas que eles irão espalhar pelo país afora.
E seguiram os dois até a banca do Benito. As
manchetes começavam a mudar de tom. E algumas até de
cor. Quase que já dava para comprar de novo o velho JB.
Depois de apoiar abertamente o golpe, os jornais
começaram a entender o que é ordem unida. O Última
Hora, a grande exceção, já havia sido empastelado.
Pedro voltou cedo pra casa. E mais pensativo do que
nunca. De cima do armário, retirou sua mala de couro
colocando-a sobre a cama. Com a papelada da militância,
livros agora proibidos e algumas recordações de sua recente
viagem ao Uruguai, tirou para fora a bolsa azul que ganhara
de seu pai. Colocou a mala de volta e deitou na cama.
Com a bolsa nas mãos, fechou os olhos e começou a
pensar se teria mesmo coragem de assumir seu sonho de
vestir uma camisa listrada e sair pelas avenidas do mundo
como fotógrafo de rua. Nem tanto pela ditadura, dizia para
si mesmo. Afinal, em relação a outros companheiros, a sua
situação era até confortável. Nas poucas vezes que estivera
no DOPS, na Avenida Afonso Pena, os interrogatórios não
duraram mais que algumas horas. É verdade que chegara
a ser indiciado em um único IPM, instaurado para apurar
atividades tidas como subversivas no meio estudantil
secundarista de Belo Horizonte. Pedro nunca soube se os
milicos não descobriram mesmo nada ou se houve uma
mãozinha de seu tio, conhecido major da repressão.
Quando estava quase a adormecer sua mãe bateu na
porta do quarto e falou que havia alguém lá fora querendo
falar com ele.
Ao pé da escada, o poeta que Pedro havia conhecido
poucos dias atrás na Cantina do Lucas. Naquela noite, depois
de algumas cachacolas e um delicioso frango à Cubana,
“seu” Olympio apresentara-lhe um amigo de infância,
“comunista como eu e excelente repentista” – acrescentou
à guisa de apresentação.
Depois de agradecer e recusar o convite para entrar,
Herculano entregou o que havia prometido no bar: nome
e endereço de uma pessoa que poderia recebê-lo na
Alemanha.
De volta a seu quarto, Pedro Pedra colocou o precioso
papelzinho na bolsa azul, junto com a Polaroid que o avô
lhe dera de presente.
.......................................................
Por sugestão de um imigrante espanhol, que tinha
conhecido num café próximo da Hospedaria, João Pedro
decidiu ir de bonde até o Largo de São Bento. Um detalhe
que ele não via a hora de contar para seus parentes em
Portugal: o bonde era elétrico e não puxado a burros. Mas
logo se lembrou que um rapaz de Penalva já havia visto e
até utilizado um transporte elétrico em Lisboa.
Seu destino era uma rua próxima ao Largo de São
Bento. Segundo dizia o anúncio da revista Fon-Fon, que
ele trazia consigo, a Casa dos Photografos situava-se à Rua
Florêncio de Abreu, 17. Como ele já havia trocado os contos
portugueses pelos contos de réis brasileiros, pagou os 200
réis ao condutor do bonde sem saber se era caro ou barato.
Caro mesmo era o preço da máquina que ele iria conhecer
e, quem sabe, comprar.
Exatos 50 dias depois de João Pedro descer do bonde
no Largo de São Bento, a casa de dona Maria das Graças
Pires era uma festa. Parentes e vizinhos, convidados ou
não, sentaram-se à volta da mesa para saber, de viva voz,
as notícias do Brasil.
Minha querida Mãe:
Peço desculpa por só agora escrever. São tantas as
coisas que tenho para contar que vou começar pelo
final, pois sei que a Mãe quer saber se eu já estou
empregado e se tenho me alimentado bem.
Para a primeira pergunta, tenho a dizer que já tenho
trabalho. Veja mãezinha que acabo de comprar o meu
próprio emprego. Trata-se de uma máquina
fotográfica e eu vou ser fotógrafo no Brasil. É uma
máquina muito complicada, mas tenho todas as
informações. Com ela posso ir a qualquer lugar e fazer
retratos às pessoas. Não é nada parecido com o que
existe na cidade do Porto ou mesmo na Capital. A
máquina tira a foto e ainda calha que posso entregar
a fotografia poucos minutos depois. Depois eu explico
direito como ela funciona, pois tenho ainda de ler e
aprender.
Estou em São Paulo, uma cidade que é quase a metade
de Lisboa. Graças à Mãe e ao padrinho, o dinheiro
tem chegado. Então não comprei a máquina de
fotografar? No Brasil, querida Mãe, a moeda tem o
mesmo nome, mas o seu valor é diferente. Aqui
também é tudo mil-réis e contos.
Agora, eu gostava de contar à Mãe a maior das
novidades. Vou sair de São Paulo e vou morar para
outra cidade do Brasil. É uma cidade tão nova que
não tem nem 20 anos de idade. Veja a Mãe. Na loja
em que eu comprei a máquina fotográfica havia um
armário cheio de fotografias. Na prateleira de cima,
cinco retratos da cidade de Belo Horizonte. Como os
retratos estavam escritos em francês, pedi ao caixeiro
para as traduzir. Foi ele quem me falou sobre a nova
capital do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte. As
fotos, chamadas Bilhete-Postal, foram impressas para
mostrar aos imigrantes uma nova possibilidade de
residência e trabalho. Como a cidade ainda está a ser
construída, pensei que lá teria maiores oportunidades
do que numa cidade grande e cheia de imigrantes
como São Paulo. A Mãe não concordaria comigo?
Aqui estou eu, com uma máquina fotográfica ao pé
da cama e a passagem já comprada para Belo
Horizonte. De Portugal, tenho...
Dona Gracinha limpou os olhos com o lenço já
encharcado de lágrimas. Enquanto alguns pediam para ela
continuar a ler até o final, outros, recém chegados,
suplicavam para que a saudosa mãe retornasse ao início.
Do outro lado do mundo e muito antes da carta chegar
a Trancozelos, João caminhava em direção à Estação. No
dia anterior, ele havia levado o imenso pacote e lá
depositara a máquina no armazém. Difícil havia sido dormir
naquela noite, sabendo que todo o seu futuro estaria lá na
Estação, entre caixotes e baús. Mas assim o aconselhara a
senhora dona Amanda, da Pensão Estrela de Davi. Ainda
bem, suspirou aliviado, é que a Estação do Norte, de onde
partiria em direção a Belo Horizonte, ficava ali mesmo no
Braz.
No vagão de segunda-classe, ele chegou a fazer um
cálculo de quantos cestos e quantos queijos seriam
necessários para chegar àquele imenso valor. Sim, toda a
família o ajudara. Até mesmo alguns comerciantes, que
chegaram a adiantar valores de compras futuras. João viu
passar uma nuvem em seu coração e seus olhos ficaram
rasos d´água. E se nada desse certo, pensava. E se a
máquina não funcionasse como garantira o vendedor? E
se ninguém gostasse de tirar retratos em Belo Horizonte?
Eram tantos os ses que, de soluço em soluço e apesar dos
balanços e da poeira de carvão, acabou dormindo e
sonhando com o melhor dos mundos.
.......................................................
Na cabeça de Pedro Pedra a decisão já estava tomada.
O momento, agora, era iniciar os preparativos. E, entre
eles, conseguir dinheiro para comprar a passagem e ainda
um troco para os primeiros dias de Europa. Pedro pensou
no que poderia vender. Bobagem. Ele não tinha nada de
valor que pudesse dar uma contribuição substancial ao
projeto. Então, concluiu, o negócio vai ser passar o chapéu.
Dos amigos, nem pensar. Boa parte deles andava à volta
com os tais inquéritos que a ditadura impingia a torto e a
direito. Ainda vai acabar sobrando para mim, disse Pedro
a seu primo Abdalla após assistir uma sessão no Cine Pathé.
Os militares já haviam ocupado todo o espaço possível.
Nas empresas públicas, mandavam os coronéis. Nos jornais
e revistas eram os tenentes que ajudavam os diretores a
praticarem a vergonhosa censura prévia. E na presidência
da república, através de um simulacro de eleição, colocaram
um general estrelado. Os antigos companheiros de Pedro
andavam sumidos. Alguns, como o Zé Maria, já haviam
pulado fora. Outros continuavam na ativa. Isto é:
respondendo aos processos, mas indo dormir em casa. A
situação, no entanto, era de cuidados. O regime apertava o
cerco e as notícias de mortes e desaparecimentos começaram
a surgir à boca pequena. Antes do final do ano, os milicos
retiraram todas as máscaras: dissolvem os partidos e retomam
as cassações que haviam iniciado logo após o golpe.
Não foi assim tão difícil conseguir o equivalente a mil
dólares. Para Pedro, a quantia era mais do que suficiente.
Para espanto de todos da família, o agora tenente-coronel
Enéas havia contribuído com nada menos do que 200
dólares. Pedro recebeu as quatro notas novinhas em folha
do tio torto, imaginando que o dinheiro seria para mantêlo
fora do ar. O restante foi conseguido dentro de sua
própria casa. Seu pai, mesmo com todas as dificuldades,
acabou por conseguir, talvez através de um empréstimo, a
maior parcela.
No dia 21 de novembro de 1964, Pedro coloca a sua
mala na parte de trás do jipe de seu pai. De óculos escuros
estilo Ronaldo para ninguém ver os olhos vermelhos,
despede de sua antiga babá e dos seus três irmãos que
ficariam em casa. A mais nova sorria como se Pedro
estivesse indo para uma festa logo ali na esquina. É verdade
que o irmão viajante havia lhe prometido trazer uma boneca
que anda e fala. Já sua outra irmã, que iria acompanhá-lo
até a Pampulha, tinha um semblante fechado. Ela sabia
que essa nova viagem de Pedro poderia não ter volta.
Quando chegou ao sagüão do aeroporto,
acompanhado dos pais, uma surpresa. Incluindo seu avô e
padrinho, lá estava boa parte de sua família. Na despedida,
sua irmã entrega-lhe um embrulho: é um caderninho para
você ir anotando o seu diário, explicou. Pedro, chorão de
marca maior, agüentou firme até tomar seu lugar na
poltrona do Convair da Varig.
.......................................................
O susto não poderia ter sido maior. João Pedro foi
jogado para frente e ainda recebeu um pacote na cabeça.
Abriu os olhos imaginando ainda estar no navio que o
trouxera ao Brasil. E pior: o barco estaria soçobrando.
Mesmo tendo sido educado para nunca dizer palavrões,
ele soltou um sonoro ó cabrão. Com a súbita parada e sem
saber o que estava acontecendo todos os passageiros
colocaram-se de pé no vagão. João procurou se recompor
e perguntou ao vizinho se já haviam chegado a Belo
Horizonte. O dito, em alto e bom som, provocou uma
enorme risada de todos. E assim ficou sabendo que
faltavam entre 20 e 30 horas para chegar à nova capital de
Minas Gerais.
A cidade de Guararema, ainda no estado de São
Paulo, era a primeira parada de café da longa jornada.
Antes de descer para esticar as pernas e talvez comprar
alguma coisa para comer, João Pedro entregou e recebeu
de volta o bilhete da viagem, picotado pelo sisudo chefede-
trem. Já na estação, aproveitou para ler o cartaz com as
próximas paradas e seus horários. A cidade de Belo
Horizonte não constava, mas ele já havia sido informado
que teria de mudar de trem em Barra do Piraí, no estado
do Rio de Janeiro. De lá, seguiria até Queluz, onde teria de
pernoitar e pegar ao meio-dia um outro comboio até o seu
destino. Meu destino, pensou com seus botões, sentindo
aquele friozinho na barriga. Mas, ato contínuo, seus
pensamentos fizeram voltar os ponteiros até a sua terra e
sua gente.
No calendário da cozinha, dona Gracinha ia riscando
os dias passados desde a partida do filho. Era sempre a
sua primeira tarefa do dia. Naquela sexta-feira, 23 de
setembro de 1910, um misto de alegria e apreensão tomava
conta de todos. Chegara mais um mimo de João Pedro.
Antes de abrir o volumoso envelope pardo, dona Gracinha
deixou cair seu olhar nos selos da República dos Estados
Unidos do Brasil. Ela parecia procurar nas estampas dos
políticos brasileiros respostas de uma mãe aflita. Como
estariam tratando o meu menino...
Querida Mãezinha:
Já lá se vão seis meses desde que sai de Portugal. Podia
pôr-me a escrever horas e horas sobre cada pedaço que
deixei em Portugal. Sei que não posso fazê-lo. Vamos,
pois, às novidades, que são muitas e, graças a Deus,
bastante positivas.
Fiquei a dever uma explicação sobre a máquina de
tirar e revelar retratos. Depois de ler e reler toda a
papelada, acredito estar pronto para tirar dela o meu
sustento.
A máquina não é grande, parece um caixote de
damasco. As laterais são de vidro, para que eu possa
mostrar as minhas melhores fotografias, para
chamariz. Ela fica em cima de um tripé articulado.
Por trás tem um grande pano preto que protege os
negativos e os produtos químicos do sol. Lá dentro,
querida Mãe, eu tenho um verdadeiro laboratório
fotográfico. Em poucos minutos posso entregar a
minha arte no tamanho de 9 x 12 centímetros, como
aquele Bilhete Postal que lhe enviei quando estava em
São Paulo.
A viagem de São Paulo para Belo Horizonte foi uma
verdadeira aventura. A Senhora não queira imaginar
como é grande o Brasil. E veja que, para os brasileiros,
Belo Horizonte fica perto de São Paulo! Pois foram dois
dias e duas trocas de comboio entre as duas capitais.
Felizmente havia paragens e, assim, pude
experimentar várias iguarias locais. Chequei a provar
a bebida da terra, forte, parecida com a nossa
bagaceira mas feita a partir da cana-de-açúcar.
Sei que todos querem saber como é a cidade que escolhi.
Pois Belo Horizonte não se parece com qualquer outra
cidade, nem de Portugal e, acredito que nem mesmo
do Brasil. Imagine só uma cidade construída
especialmente para ser capital. Quando desci do
comboio na Estação de Minas e olhei para fora do
prédio não acreditei. O espaço da praça era enorme.
Peguei um transporte de aluguel, carro de duas rodas
e dois assentos, com capota e puxado por um só
animal, e entreguei ao condutor o endereço da pensão
recomendada.
Pelo caminho, o primeiro contato com a cidade. O
tempo estava firme, com muita luz (agora, como futuro
fotógrafo, eu só devo pensar na claridade). A pensão
fica do outro lado da cidade. E as ruas são tão largas
que tudo aqui parece mais distante ainda.
Demonstrando conhecimento, o condutor foi falando
os nomes das ruas, avenidas e praças. Confesso que,
às vezes, eu não percebia o que ele estava a dizer. Na
Praça da República, já próximo à Pensão, passamos
pelos prédios da Faculdade de Direito e da Câmara
dos Deputados.
No primeiro dia, ao ver poucas pessoas nas ruas,
cheguei a duvidar do sucesso da minha empreitada.
Mas, depois, descobri que a nova capital de Minas é
uma cidade grande e populosa. O condutor garantiume
que a população atual de Belo Horizonte chega a
33 mil almas.
Deixo-lhe minha nova morada: Pensão Juventus, Rua
dos Aimorés, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. É
um local bastante movimentado e até chic, como
diriam os imigrantes franceses. A Pensão fica na
mesma rua da Prefeitura Municipal e ao pé da Igreja
Nossa Senhora da Boa Viagem, padroeira de Belo
Horizonte.
Agora, a grande novidade que reservei para o final.
Já estou a trabalhar. Eu não poderia ter escolhido uma
cidade melhor do que Belo Horizonte para exercer o
meu ofício de Fotógrafo de Jardim. Sim, pois enquanto
em São Paulo há retratistas por todas as praças e
parques, aqui ainda não encontrei um só. Claro que
existem vários e bons fotógrafos na cidade, mas todos
eles trabalham em suas próprias oficinas ou produzem
suas chapas por encomenda das repartições ou das
grandes companhias comerciais.
Assim que me instalei e comecei a fazer experiências
com a máquina fui procurar os fotógrafos que
trabalham em Belo Horizonte. Para minha surpresa,
fui muito bem recebido por todos. Talvez pela minha
juventude e pelo respeito que demonstrei aos mestres.
E conheci fotógrafos já estabelecidos há anos na
cidade, como Estêvão Lunardi, que me mostrou uma
série de postais que está fazendo sobre a capital. Já
com o fotógrafo e pintor Olindo Belém, conheci uma
técnica que, um dia, pretendo aprender: ele colora as
suas fotos, deixando as imagens exatamente como as
vemos ao natural.
Mesmo sendo uma cidade de grande porte, com quatro
salas de projeção de filmes e dois teatros, Belo
Horizonte tem uma característica muito especial. O
relacionamento é fácil, em especial com os imigrantes
italianos. Corre uma anedota que há na cidade mais
estrangeiro do que gente...
Depois de andar pela cidade e examinar os locais
principais onde eu poderia montar a minha máquina,
escolhi a Praça da Liberdade. Com o Palácio
Presidencial e suas Secretarias, a Praça da Liberdade
tem a mesma importância do Terreiro do Paço de
Lisboa. O movimento na Praça da Liberdade é grande.
Da parte da manhã recebe os miúdos, à tarde é a vez
dos altos funcionários. Aos domingos, as famílias e os
namorados.
Mas o que estou aqui a fazer ao escrever sobre a cidade
e seu povo? Melhor do que as letras que ora envio
seguem junto a esta as minhas primeiras fotografias.
Ainda estou a treinar, mas, pelos retratos, a Mãe e
todos aí em casa poderão conhecer melhor a cidade
que vosso filho escolheu para viver. Numerei todas as
fotografias, menos uma. Na primeira sou eu. Nela, pode
ver como trabalho todos os dias de chapéu e fato
completo. Foi tirada no Parque Municipal de Belo
Horizonte. Ao fundo, uma das mais belas edificações
da cidade, o Palacete dos Correios.
Nas demais fotografias...
.......................................................
Tudo segue nos conformes, pensou Pedro Pedra ao
descer do trem na Estação de Neustadt, na região da
Weinstrasse. Depois de passar sem problemas pela
imigração e alfândega no aeroporto de Frankfurt, consegue
tomar um ônibus até a estação central. Mesmo sem qualquer
familiaridade com a língua alemã, as indicações eram claras
e foram seguidas sem problema. Foi até o guichê de turismo
e pegou um mapa da cidade.
Com a mala na mão e a Polaroid a tiracolo, Pedro
deu mais uma espiada no endereço indicado e parou
defronte ao número 4 da Friedrichstrasse.
Pelo interfone, uma voz com aquele inconfundível
acento gaúcho identificou o visitante e fez abrir a porta.
No segundo andar, é recebido pelo dono da casa, que
pega a sua mala e o conduz a um espaçoso quarto. Matando
a curiosidade do brasileiro, o alemão explica que morou
muitos anos no Rio Grande do Sul e que mantém estreito
contato com inúmeras associações do Brasil. Só então Pedro
fica sabendo que o seu anfitrião é um pastor luterano. A
conversa, regada ao legítimo vinho da região, durou até o
último galo cantar na madrugada do dia seguinte.
Pedro explicou seus objetivos e o pastor suas
limitações. Mas Pedro podia ficar tranqüilo, insistiu o
alemão. Até conseguir ganhar os marcos necessários ele
teria cama e comida. A comida poderia ser lá mesmo, mas
a cama, por uma exigência da congregação, teria de ser
em outro local. Amanhã vamos lá conhecer sua nova casa,
brincou o pastor levantando mais um brinde à resistência
antifascista brasileira.
Pedro Pedra quase não conseguiu dormir. Também
pudera. O poderoso sol de inverno inundava todo o
aposento, entrando sem cerimônia pela imensa janela sem
cortina. Lá pelas tantas, já ouvindo certo rumor, Pedro
levantou-se e foi chegando meio sem jeito na grande área
que conjugava copa e cozinha. O apartamento era todo
branco e franciscano seu mobiliário.
Saudado com um verde-amarelo bom-dia, Pedro
arriscou um sonoro guten Morgen. À mesa, o pastor explicou
como e até que ponto poderia contribuir na permanência
do novo amigo em Neustadt. Ao agradecer, Pedro
comunicou que seria por um breve período. Sua intenção,
explicou, era chegar até Berlim e ali tentar ganhar a vida.
Após um café-da-manhã reforçado, Pedro foi levado
até sua primeira morada em terras germânicas. Para seu
espanto, o pastor havia parado defronte a uma graciosa
igreja e, ao apontar para uma de suas duas torres, informou:
lá será o seu ninho em Neustadt. De volta ao apartamento
para pegar a mala, Pedro ficou conhecendo um pouco da
história do lugar onde iria viver e, na primeira oportunidade,
anotou em seu caderno: A Igreja da Doação, em alemão
Stiftskirche, começou a ser construída no ano de 368, mas
suas torres, inclusive a minha, só ficaram prontas em 1489.
Em 1707 aconteceu uma coisa única e curiosa: a igreja foi
dividida em uma parte protestante e a outra católica. Hoje,
na mais perfeita harmonia, convivem pastores e padres.
Lado a lado, cada um com o seu rebanho. Na torre moram
ainda seis alemães: são chamados de “Tümer”, que em
português poderia ser traduzido por “observadores da torre”.
A função deles é descobrir início de incêndio e avisar aos
bombeiros.
E assim o belo-horizontino Pedro Pedra montou
barraca na torre mais famosa da região. Mais: a igreja é o
símbolo de Neustadt, que, apesar do nome em português
significar Cidade Nova, é mais velha do que a serra.
Já no segundo dia, Pedro retira do armário a Polaroid,
desce a longa escadaria e sai pelas ruas e praças da cidade.
O frio parecia congelar orelhas e nariz. A poucos metros
da igreja, avista um casal com duas crianças. Com as poucas
palavras que decorara num livrinho espanhol-alemão para
turistas, aproxima-se e oferece para tirar uma foto. Apenas
5 marcos, repetia o brasileiro em alemão. Sim, sim, gritaram
as crianças. Feita a pose, o único fotógrafo de rua naquele
duro inverno de Neustadt capricha, bate e vende a sua
primeira foto.

O tempo costurado, Carlos Perktold

Sabíamos, contado em segredo nos quartos da casa, o
rápido e doloroso drama que havia despedaçado a nossa
mãe. Depois de sete anos de felicidade com meu pai e
com quatro filhos, ele faleceu de misteriosa doença, que
destruiu também toda a economia que guardara como
advogado. Ela foi deixada jovem no mundo com uma
escadinha de quatro degraus para educar e nos transformar
em homens, e com uma renda insuficiente para o que
tínhamos tido até então. Eu era o caçula e tinha oito meses
de idade quando tudo aconteceu. Meu irmão mais velho
tinha seis anos e a única coisa de que ele se lembra dessa
ocasião é de grande movimentação dentro de casa durante
dois ou três dias. Depois foi só silêncio. Inclusive dentro
dele. Tudo o que sabíamos daqueles seis meses de doença
nos foi contado pelo tio mais velho da família, que nos
ajudou financeira e socialmente durante anos até que
conseguíssemos superar a ausência de papai e de tudo o
que ele nos oferecia. De nós quatro, apenas João, o mais
velho, tinha lembrança dele, em especial quando víamos
as fotografias da família acumuladas durante os sete anos.
Muitas vezes o surpreendi de olhos fechados e com as
fotos na mão. Como você pode ver as fotos de olhos fechados,
João, perguntava. Ele respondia que via com o coração.
Pequeno, não entendia sua resposta. Jorge, Lúcia e eu nunca
sentimos a ausência paterna, talvez porque não se perde o
que não sentíramos ter tido e aprendi, ao longo da vida, a
colocar meu tio no lugar de pai.
Morávamos num apartamento de classe média
suficiente para os então seis integrantes da família. Dois
dias depois do sepultamento, minha mãe começou a chorar
e, a partir daí e durante oito meses, ela foi tratada por
psiquiatra que chamava sua tristeza de depressão reativa.
O médico acrescentava prognóstico misterioso afirmando
que seu estado poderia durar dois meses, dois anos ou
ficar para sempre, ninguém sabia. Certos dias, ela acordava
mais cedo para sobrar-lhe mais tempo para chorar. Em
outros, só dormia depois de exaurida de cansaço.
Exatamente oito meses depois do início de sua tristeza,
numa tarde de muito calor e numa atitude surpreendente
para a enfermeira, ela levantou-se, tomou banho, trocou
de roupas, penteou-se e surgiu na sala perguntando pelos
filhos. À noite comentou com meu tio que não choraria
mais. E nunca mais chorou. No dia seguinte, esvaziou o
armário de meu pai, doando tudo. Muitas camisas, ternos,
uma montanha de gravatas, sapatos, tudo foi posto para
fora. Ela teve o cuidado de cortar as cuecas e pijamas
usados e os colocou no lixo. Descobriu vários cortes de
tecidos que, esquecidos, não haviam sido transformados
em camisas. Ao final estava exausta. Naquela noite dormiu
sem remédio. Foi a primeira depois de quase um ano e
meio de insônia. A partir daí tratou de recuperar o que
emagrecera nos meses de pesadelo.
Naquele dia, quando limpou o armário de meu pai,
ao ver os cortes de tecidos separados, únicas peças não
doadas, nasceu-lhe a idéia de se tornar costureira. A decisão
veio-lhe com a crença de que, se no meio de tanta coisa
para doar, ela havia separado os tecidos, alguém tentava
lhe dar um recado. Eram crenças místicas dela e da família,
da mesma linhagem que a levou a picar as roupas íntimas
do marido. Duas semanas depois procurou curso de corte
e costura, oferecido com freqüência nas paróquias locais
nos anos 1950. De início sentiu-se humilhada pela busca
de uma atividade profissional que nunca lhe ocorrera,
expondo a sua dupla condição de viúva e de mãe com
quatro filhos pequenos, no mesmo local onde tinha sido
dama de caridade, denominação dada a quem colaborava
com assiduidade e certa generosidade na igreja. Mas a
depressão a havia transformado.
Naquela época as costureiras trabalhavam em casa,
oferecendo um serviço que as grandes fábricas e as
confecções de hoje não haviam liquidado, juntamente com
a de alfaiate. O mundo não era tão competitivo nem tão
globalizado e havia clientes com tempo para aguardar uma
semana ou duas por uma roupa feita sob medida.
A sua primeira decisão foi utilizar os cortes de tecidos
recebidos de herança para aprender a nova atividade. Por
inabilidade e falta de conhecimento, perdeu quatro. Mas
em seis meses ela se transformou numa das mais dedicadas
alunas daquele curso. Daquele amontoado de pano, ela
havia confeccionado oito camisas em boas condições, todas
vendidas na própria família. Minha mãe havia descoberto
que poderia defender a si mesma e aos seus filhos, educálos
e servir de exemplo com o seu trabalho. Lembro-me de
que, anos depois, de volta do colégio, eu ia visitá-la na
igreja e via a antiga aluna ocupando agora o lugar de
professora e, pela sua colaboração naquele curso, havia
recuperado o título de dama de caridade.
Se houve mudança na nossa vida depois do
falecimento de meu pai eu nunca soube. Quando me
descobri pensando, a nova família já estava organizada,
com a minha mãe ocupando os dois lugares, materno e
paterno, acrescida de meus tios em volta, preocupados
conosco e dando opiniões sobre nossa educação. Vê-la
naquele lugar de costureira foi uma rotina a que eu me
havia habituado. Ouvia o som da máquina na qual ela
trabalhava em casa e o tempo me ensinou que ele era
uma sinfonia maternal, cujas notas jamais conseguirei
colocar nas pautas. João fazia seu para-casa com aquela
música nos ouvidos e ocasionalmente, como se fosse uma
necessária pausa musical, pedia a mãe para lhe explicar
algo que não havia entendido. Ela, paciente, largava o
trabalho e batalhava com ele. Batalhava é o termo mais
apropriado porque, de todos nós, João foi o que mais
sentiu a ausência de nosso pai, talvez por causa da sua
idade quando do falecimento dele. Ausência que se refletia
no seu aprendizado, na sua revolta frente à vida quando
entendeu que ele não voltaria e que, sem ele, muita coisa
mudara.
Mas o primogênito da casa havia herdado o
temperamento da mãe e, tal como ela fizera com a depressão
reativa, um dia ele começou a compreender os textos, o
raciocínio matemático e se saiu bem como aluno e, mais
tarde, bom profissional. Contando assim, tão rápido, meses
e anos de nossas vidas, o leitor não saberá o que foi aquele
período e o tanto que uma casa fica desorganizada com
um falecimento anacrônico. Anacrônico sim. Meu pai
desaparecera aos 32 anos de idade. A ausência dele
equivaleu ao rompimento da viga mestra do prédio sólido
que éramos, cujo peso a outra viga precisa, de repente,
suportar. Certas pessoas, perplexas diante do anacronismo
batendo-lhe na cara despreparada, deixam desmontar o
prédio inteiro; outros resistem sem que consigamos
compreender como foi possível. Minha mãe foi uma viga
ímpar, suportando o peso da juventude perdida numa
viuvez sem fim – nunca mais se casou –, arcando com
quatro filhos e pouco dinheiro para nos manter.
Parando hoje para contar o que foi nossa infância,
juventude e parte de nossa vida adulta, sinto que temos
uma biografia semelhante à de outras famílias. Nosso pai
não foi o único a desaparecer em plena juventude,
deixando viúva deprimida. Havia casos mais tristes que o
nosso. Antônio Celso, um vizinho que nunca esqueci, não
faleceu, mas foi uma equivalência à morte quando ele um
dia saiu de casa pro trabalho e nunca mais voltou. Eu
sentia pelos seus filhos, todos meus amigos de infância,
uma empatia solidária que ajudou a consolidar amizade a
permanecer até hoje.
Minha mãe, depois da depressão, não lamuriou a
vida que passou a ter com a viuvez. Levantava cedo, punha
todos os filhos pra fora da cama, mesmo nos fins de semana,
e nos transformou em guerreiros da vida. Em certas ocasiões,
raras, mas que nunca esqueci, ela me olhava com muita
ternura e dizia: meu filho, hoje levantei com o coração
roxinho. Apenas essa frase, sem acrescentar nada. Apesar
de garoto, nós dois fazíamos um eloqüente silêncio que,
no meu tempo vivido de menino, parecia durar a tarde
inteira. Lamento não a ter abraçado naqueles dias; teria
sido um equivalente das coisas que aprendi adulto. Nunca
a vi chorando, mesmo nos dias mais difíceis. Acho que à
noite, quando estávamos todos dormindo, ela não resistia
e, na solidão dos cobertores, se abria em prantos. Mas isso
é o que eu imagino, nunca acordei com qualquer barulho
que comprovasse algo vindo do quarto. A tristeza podia
estar escondida num canto de seu coração de eterna viúva.
Em nossa cidade, foi a primeira a inverter o que as
outras costureiras faziam. Passou a ir à casa dos fregueses
e a cobrar pelo dia e não pelas peças. Em casa havia
sempre duas agendas preenchidas: uma ficava com ela e
outra depositada sobre o móvel da sala, com vários meses
à frente, tão grande era a procura pelos seus trabalhos, de
tal forma que sabíamos, com meses de antecedência, que
tal dia do mês ela estaria na casa de Fulana. Se precisássemos
de algo, bastaria procurá-la naquele endereço.
Meus tios nunca comentaram sua decisão de aprender
o ofício de costureira, mas sabíamos que não foi uma
decisão bem aceita na família. Teriam preferido que ela
cursasse Direito e herdasse os clientes de meu pai. Inútil
tentar explicar-lhes que os clientes já estavam perdidos desde
o início da doença dele. Quando adoeceu, ele ficou seis
meses sem ir ao escritório, sem estagiário até mesmo para
atender os telefonemas. Se ela esperasse pelo vestibular,
os anos de curso, conhecer tudo aquilo em que meu pai
tinha sido craque, seria impossível cuidar dos filhos. Nossa
dificuldade era imediata e a solução deveria ser da mesma
forma. Somente respeitaram sua atividade quando viram o
quanto ela era valorizada na paróquia e o tanto que era
querida pela alunas.
Tudo isto que tento resgatar aqui, contando a história
de uma heroína muito particular, passou a ter mais interesse
quando o tempo foi cuidando de nos formar e a família se
levantou social e financeiramente depois que meus irmãos
e eu terminamos a faculdade e começamos a trabalhar
com afinco. Ganhamos algum dinheiro, nada exorbitante
porque herdamos a honestidade dos pais e, com ela, é
difícil enriquecer. Queríamos impedir nossa mãe de
continuar trabalhando quase treze horas por dia em casa
alheia e vê-la juntar economias que foram suficientes para
nos formar, mas que lhe havia devorado toda a beleza e
juventude. Nos primeiros anos não podíamos modificar a
situação por pura falta de opção e quando foi possível,
nossa mãe se recusou alegando que se sentia feliz na sua
atividade. Nunca reclamou das horas de trabalho, nunca
se queixou de doença ou de cansaço. Quando
comentávamos sobre isso, dizia que ninguém se sente
cansado quando faz o que gosta. Depois de adulto, houve
época em que julguei seus dias de costureira e as longas
horas de trabalho como uma defesa maníaca de uma
depressão que surgiria a qualquer momento. Eu estava
errado. Ela era feliz no que fazia, com a vantagem de
ganhar o suficiente para cuidar dos filhos.
Mas a partir de 1970 seu trabalho era desnecessário
na família. Fizemos questão de mostrar-lhe. Mostramos ainda
que até as lojas de tecidos já não tinham o movimento
daqueles anos iniciais e que aquelas de roupas feitas
estavam matando profissões como a sua, a de alfaiate,
assim como o tempo havia liquidado com as de calceteiro,
picheleiro, de amolador ou de telegrafista. Era uma
imposição da globalização, das grandes corporações, do
desinteresse pela elegância e o aparecimento da era das
aparências, época na qual uma calça de marca famosa ou
uma camisa com logotipo são mais importantes que um
trabalho artesanal feito sob medida. Ela, com dificuldade,
aceitou e foi diminuindo seus trabalhos. Começou
trabalhando só à tarde. Pela manhã cuidava do jardim, da
casa, costurava para os meus tios que, ainda e sempre
solteiros, não sabiam pregar um botão em camisa e a viam
como a salvação da elegância deles. Depois ela inverteu o
horário de trabalho e visitava suas clientes pela manhã.
Estas foram diminuindo consideravelmente. Nunca
soubemos o que era feito do seu dinheiro e nem ela dava
explicações. Há muito não era arrimo de família. Até que
chegou o dia no qual a única agenda da casa ficou vazia.
Ninguém mais a procurava.
O tempo passou rápido, não tão depressa quanto o
necessário para ler esta frase, e oito dias depois de seu
falecimento reunimo-nos para esvaziar o mesmo armário
que fora de meu pai. Fizemos então a descoberta que
surpreendeu a todos: com o seu dinheiro ela havia
comprado uma quantidade enorme de cortes de tecidos,
todos embrulhados para presente com o nome de cada
um de seus antigos clientes, alguns já falecidos. Compreendi
que ela queria convencer seus potenciais presenteados a
lhe entregar o tecido para ela voltar a exercer a atividade
na qual havia sido tão feliz.

A tropa do Morgado, Cida Chaves

“Sertão é onde manda quem é forte com astúcias. Deus
mesmo, quando vier, que venha armado”. Guimarães Rosa.
Vozinha contava recordando as acirradas discussões:
– É imprudente levar o menino com apenas seis anos
numa viagem tão longa.
– Mas ele é o herdeiro de dois morgadios, respondeu
Domingos.
– Não entendo de morgadios. Aqui não existe isso,
ela disse.
– Os bens de família são vinculados em Portugal,
não podem ser divididos nem alienados e João é o
primogênito das Casas da Fraga e de Paredes. São bens
valiosos que um dia serão regidos por ele. Isso não é apenas
um privilégio, mas uma responsabilidade muito grande
manter as conquistas materiais e culturais, o senso ético,
estético, desenvolvido por gerações e gerações. Ter
desenvolvida consciência de estirpe a ser preservada e
depurada. Isto é passado através dos atos, as palavras não
transmitem...
– E como se faz isto!
– Educando ou nos processos de iniciação.
– Ora Domingos, os índios...
– Enguele, não são apenas os índios. São todos que
possuem algo a preservar. Um morgado não se une a um
qualquer, é um fidalgo, filho de alguém, acumula deveres
mais do que direitos. Um fidalgo jamais se embriaga com
álcool ou paixão. Jamais se deixa seduzir ou intimidar.
Deve ser dono de si mesmo... É...
– É demais para uma criança...
– Para um menino, não para um morgado.
– Esta viagem não tem sentido, ela insistia. O que
tem a ver com os morgadios?
– O menino aprenderá a dominar a sede e a fome, a
controlar o corpo e as necessidades. Aprenderá a viver o
desconforto, desfrutar os prazeres sem arrebatamentos e
responderá às dores sem melancolia. Poderá mais tarde
liderar uma família e ser sábio como Salomão.
– Numa tropa, nesse sertão...
– “Experientia praestantior arte”, mais vale a
experiência.
– “In propria pelle quiesce”. Contenta-te com a tua
sorte, meu pequeno João, ela comentou. Enguele vivia em
sobressalto. Pressentimentos demais tolos rodeavam dias e
noites suas.
João tinha apenas seis anos de idade. Era o ano de
1868. O mesmo em que morrera Vó Donana. Enguele, sua
neta, casara-se com o português Domingos José, que até
então gerenciara todas as fazendas de Donana. As de gado
vacum e muares, desde a sede Umbuzeiro, Ingazeira e
Papagaio. Supervisionava os retiros de Lagoa, Pinga, o sítio
das Antas entregues aos vaqueiros. Enfim, todos os bens
que constavam do testamento de Donana. Depois da morte
desta entregou-os a sua sogra, Bernardina, a herdeira de
tudo. Domingos e Enguele compraram então uma casa na
cidade onde seria mais fácil a educação dos filhos.
Chega em visita um dos primos, Ângelo Custodio de
Almeida, capataz, conhecedor das estradas e dos negócios
de tropas, visto ser afeito a essas empreitadas. Sempre viajava
para o Sul, freqüente nas feiras de Sorocaba em busca dos
famosos muares gaúchos.
Pôs-se a falar sobre o comércio de tropas e tudo o
que o envolvia. Muito lucrativo. Lamentava a sua falta de
capital. Ângelo descrevia as aventuras que jamais sonhara.
Cavalgada vagarosa em estradas boiadeiras, labirintos, rios,
caminhos abrolhados, grotas abrigantes, grotas secadas. Um
desafio. Serras que tapavam o sol, pradaria a perder de
vista. Não fossem as mirradas árvores deles a orientar com
a sombra a rota, não se sabia onde o Norte ou o Sul. Ora a
tropa sacolejava morna entre os pousos, ora despertava
num galope pelos descampados acordados pelos cães
farejadores de animal qualquer que servisse para almoço
ou diversão. As caçadas de supetão alvoroçavam. A tropearia
marchava no ritmo sonoro dos guizos presos por coloridas
fitas no pescoço da madrinha, que na frente puxava o
cordão de mulas obedientes. Seguiam em alaridas prosas e
cantos.
Domingos possuía capital suficiente para tamanha
empreitada. Desde esse dia, ficou seduzido pela aventura
e convencido de que devia investir parte de seu dinheiro
na compra desses muares necessários. Todo o transporte
dependia desses animais. Havia o que levar de um lugar a
outro nesse imenso país. Gente comprava e vendia,
importava e exportava o que houvesse por bem fazer. E os
cavalos de raça? Paixão antiga de fidalgo acostumado bem
ou mal, não se sabia.
Abandonou os planos de estabelecer-se em Caetité.
Juntamente com outro primo, José Maria, homem de sua
inteira confiança, organizou em alguns dias a viagem a
Sorocaba para a aquisição das mulas.
Nas poucas horas de intervalo entre os arranjos, as
discussões com Enguele esquentavam. Por fim, inúteis os
argumentos todos, contratados o arrieiro, o barqueiro,
barranqueiro prático de atravessar rios e enchentes, o
quirguiz competente nos negócios de compra e venda em
todo lugar, os trastes adequados, ela tomou do rosário e
começou a desfiar ave-marias. De nada adiantou falar de
avisos, de sonhos premonitórios. Em vão.
De gibão, calça, chapéu de couro e correia enfeitada
de tachas, a pele rosada de português e o porte elegante,
Domingos mais parecia um barão fantasiado de vaqueiro.
O menino, vestido de couro, segunda pele diziam os
capangas, montava o cavalo como gente grande.
Acostumado que estava a seguir o pai nas visitas pelas
fazendas e sítios, ia orgulhoso acompanhá-lo na aventureira
investida de negócios novos.
Partiram guiados por Custódio, o melhor conhecedor
dos caminhos e dos comércios de tropas do sertão.
Rumavam para o Sul com almocreves, madrinheiros,
vaqueiros, a jagunçada necessária. Enguele pressentia
descida aos infernos. Rezava espantando pensamentos.
Principiavam a jornada, varando terras de sabidos
tabuleiros forrageiros da caatinga espinhenta, xiquexiques,
mandacarus de braços para o céu a pedir chuva, cabeçasde-
frade no chão áspero e seco, pedregosa ameaça de
escorregos, serras ladeirosas distanciadas umas das outras.
Paisagem costumeira de clima quente e áspero, pastagens
ralas entre umbuzeiros refrescantes de sede, juazeiros
esconderijos de jacus carne de caça, pequis gordurosos,
juremas, angicos rosados, fedegosos amarelos suavizando
a poeira.
Viagens penosas, demorados meses. Quatro primeiras
léguas vencidas acamaram cansaço em acampamento
improvisado.
O cozinheiro desceu o jacá de caldeirão e sua
tranqueira de cozinha acolchoada em palhas de milho: um
casal de panelas de ferro, pratos e canecas esmaltados,
colheres, o bule de café e a trempe de ferro para pendurar
as panelas sobre o fogo. Por último, do alvejado saco de
trem retirou outros sete com feijão, arroz, toucinho, farinha
de mandioca, sal, açúcar e café. Tropa rica levava carne de
sol e lingüiça defumada.
Aliviados os animais dos arreios e cargas os arrocheiros
conduziram-nos à pastagem ainda verde sob um umbuzeiro.
A trastaria foi disposta de modo a alevantar canseira de
todos e ficar protegida. Dependuradas as redes enxotamosquito
de agave esfiapado deitaram-se João e os patrões.
Os almocreves arrancharam-se sobre os couros estendidos
e os embornais de travesseiro.
Acobertavam as colchas tecidas na fazenda, cheirando
ainda ao manjericão dos armários. Vento frio e áspero de
noite no planalto. A fogueira amornava o ambiente
enquanto afugentava os animais.
De madrugada acordou o madrinheiro, armou o tripé
de ferro sobre as brasas e pendurou a chaleira ao modo
dos ciganos. Logo o cheiro do café se espalhou. Retirada a
chaleira, pendurou-se o caldeirão e o aroma dos temperos
invadiu as narinas a salivar apetites. Os defumados
perfumavam o feijão que cozinhava devagar. Torrada a
farinha e refogadas as folhas de taioba colhidas ali mesmo,
todos pegaram suas colheres e cuités para a primeira
refeição da comitiva. Terminado o derradeiro gole de café
com raspadura alguém se levantou e, num vozeirão, deu
graças pela travessia e pelo alimento. Todos o imitaram,
acostumados com o ritual. A sobra foi recolhida para o
almoço depois de mais quatro léguas de jornada.
Os acertadores arriavam a tropa, ajustavam as cargas
nos animais, enquanto Enedino e João madrugavam o
cerrado atrás de iguarias outras, mel, ananás, provisão dos
pequis que Deus oferecia e os outros traçavam as próximas
léguas no rumo do Sudoeste . A estrela d’alva ainda
mostrando rumo eles se puseram a caminho. Seca braba.
O mato estalava sozinho assombrando o medo de
sede, bicho peçonhento, onça faminta naquele sertão
esquecido de chuva.
Dificuldades encontraram no descanso à beira da
vereda, presente do céu deitado n’ água qual espelho de
buriti, calmaria de asa branca matando a sede. Subitamente
vem a onda cabeça d’água das cabeceiras de rio pequeno,
do Verde Grande não podia haviam passado já, do São
Francisco não se sabia. Chegou enchente sem avisar
carregando o que perto havia, a bruaca de pequis boiando
secou vereda abaixo a água na boca. Não foi provisão
toda, acontece capricho do destino, estava a mula do jacá
de trastes amarrada mais longe.
Com olho espichado, olhando o mel enlameado, os
pequis que fugiam, João ajudava a peãozada a catar o que
dava e ouvia: – Trabalho de criança é pouco, quem enjeita
é louco. A enchente não deixa andar hoje. Assim é
descansar em hora errada. Melhor que cortar buritizeiro
pra fazer ponte e assim que deitar a dita a água abaixar.
Consolava esperar. Entre uma fazenda e outra os
pousos irnprovlados acoitavam. Mais um dia para chegar
ao vilarejo de Montes Claros e remendar os estragos.
Custódio aquinhoava amigos, fazendeiros abastados
donos de ranchos para tropas, pastos verdes e ademais
todas as fazendas que se prezavam tinham, na casa-grande,
seus quartos de hóspedes, camas de dossel, lençóis finos
da Bretanha guarnecidos de sóbrios bordados e rendas,
quartilha d’água na cabeceira, copos, bacia de prata e,
debaixo da cama, o urinol de louça inglesa. A hospitalidade
sertaneja farturava no café da manhã com muito leite,
tapioca com coco, cuscuz com manteiga, inhame, banana
frita, queijo de coalho.
A jagunçada dormia nos ranchos e lá cozinhava,
igualmente como nos acampamentos e estalagens salpicadas
pelos caminhos.
Apiando numa dessas fazendas de pernoite trocaram
as roupas de couro poeira e suor, chapéus, algibeiras rudes
de uso no sertão por outras mais adequadas às cidades do
Sul, conselho hábil do quirguiz, para que bem
impressionassem. Os dias contavam-se as dezenas.
Em Minas, hospedaram-se na Fazenda do Engenho,
lugar onde Domingos sabia da existência de animais seletos,
procedentes da Coudelaria de Álter do Chão. Eqüinos dos
mais afamados e estimados pelos nobres portugueses. A
oportunidade se oferecia. Estava no caminho. Chegar até a
Coudelaria Real de Cachoeira do Campo seria muita
extravagância, um desvio de muitos quilômetros. Valiamse
de tudo o que ficava no caminho para São Paulo.
Domingos José, português, educação fidalga, para
quem os cavalos de raça eram regalos rotineiros apreciava
as caçadas em animais de porte elegante. Pousaram na
fazenda famosa pelos seus jumentos e cavalos de raça e
comprometeram-se a comprar alguns, na volta. Eram de
temperamento dócil e apropriados para a montaria.
Isto implicava em cuidados devida e previamente
pensados. Os cavalos caros acostumados a pastagens fartas,
quase que tratados como gente, careciam de trato apurado,
escovações. Bicheira, nem pensar. Haviam de ser
protegidos. Custavam uma dinheirama.
Domingos fazia essas aquisições com a intenção de
reproduzi-los nas extensas terras do sertão. Na volta, então,
apanhariam os animais. Certeza tinha de que ouviria muitas
criticas: denguices de português. Mas preferia reproduzir e
vender cavalos do que negro, como tantos faziam no sertão.
Conversaria sobre isso com Leolino Xavier, acusado
de comprar negros da Bahia para os seus cafezais, em São
Paulo. O Cotrim lhe dissera que não havia outro modo de
se obter mão de obra no país. Fosse como fosse ele não
estava acostumado a vender gente, preferia lidar com os
cavalos. Donana descartava os rebeldes, melhor que surrar
cristãos. Não segurava na senzala quem não queria ficar
Nem tinha feitor ou capitão do mato. Sadoc que cuidasse
de convencer os desrespeitosos. ~
A romagem prosseguia em igualada paz, conversa
fiada enchendo o tempo, gabolices, prosa galhofeira do
Zé Maria gozando as proezas da capangada. Dois meses
de distância iam.
Deixaram a Serra do Espinhaço para trás, pegaram a
Mantiqueira infestada de cobra e jaguatirica a assustar os
cavalos. Debandada alta hora de noite minguada de lua,
escura, as estrelas do Cruzeiro e as duas do Centauro
cintilavam. Pareciam espreitar o silêncio. De repente o
relinchar dos cavalos acorda a todos e as desvairadas
correrias, qual saci lhes fazendo tranças nas crinas, levantam
a tropeirada a tentar detê-los.
– Tem onça! Grita o medo de alguém.
– Qual onça, qual nada. É jaguatirica. Assusta cavalo,
não gente.
– Qual o quê. A bicha é faminta. Rondava os restos
em volta da fogueira.
Gastaram a manhã para arrebanhar a tropa. João via
o pai e Ângelo Custódio impassíveis diante dos estorvos
adiantando ordens com firmeza. Sadoc esguichava
competência.
Nas brenhas escarpadas do Sul mineiro agregaram
Adeulino. Mameluco, ajudante de capitão do mato,
escapava desforra de negro fugido quando os sertanejos
lhe salvaram a vida. Penhorado ficara o astuto andarilho,
guia de direitura certa por aquelas bandas de paisagem
alheia. Sentia longe o cheiro dos quilombos e prudencial
era evitar embates na terra estranha.
O clima abrandava. Os Ipês amarelos e pau d’alhos
cantadores da plena primavera estavam de folhas novas
anunciando o verão e as chuvas.
Chegaram à Sorocaba quando a feira estava a terminar.
Não encontraram tropa em condições de viajar. Foram,
então, para Tatuí onde havia animais ainda gordos.
Compraram. Logo trataram de voltar. A quantidade de
muares exigiu, antes de equipar a tropa, contratar mais
gente e planejar o retorno, não mais de uma pequena
comitiva de sertanejos com as mercadorias do sertão, mas
um batalhão de escoltas, capangas desconhecidos
contratados para as centenas de muares e a carga de
mercancias importadas de delicadezas e luxos. Era
aproveitar o esforço da romagem e levar o máximo possível.
A parafernália para o retorno da tropa e as mercadorias
foram compradas em Sorocaba. Além de preços melhores
oferecia-se ali o tudo desejado que o mundo vendia e
artesãos de toda a parte comerciavam uma grande variedade
de trastes e objetos. Era uma praça de intercâmbio das
melhores abastecidas do Sul e fácil de adquirir as provisões
necessárias ainda frescas.
Ao descer optaram por transportar gêneros de alto
valor pela raridade e pequeno volume: peles, couros, fumo,
tecelagens e pelegos artesanais, as pedras e metais preciosos
fartos no sertão. O algodão tinha melhor caminho para
Salvador, via Porto de São Félix. E o sal, a mercadoria mais
valiosa, traziam o que pensavam suficiente acondicionado
nas bruacas de couro. Mais para o consumo, do que para
a venda. Sua raridade permitia usá-lo como forma de
pagamento, se necessário.
No entanto, nunca se sabe. Na volta a boiada poderia
consumir muito sal, na falta de pastagens. Era certo.
Desceram em agosto no meio da seca e voltariam na estação
das chuvas. Só Deus sabe de tamanha travessia. Se a água
for demais o sal mela. Era hora de trocar o excesso pelo
que era escasso na Bahia: cabeções elaborados, cabeçada
de platina, selas sofisticadas para substituir as selagotes do
sertão, luvas, corotes, “gongolos”, sobretudo tecidos finos,
vinhos, gêneros que são comercializados nas praças de São
Paulo.
O retorno sem eventos, tempo igual modorroso até a
Fazenda Babilônia do primo Leolino Xavier Cotrim.
Apearam à porta da Casa-Grande rodeada de terreiros de
café. Festança de reencontro, notícias da família, dos amigos,
do sertão bordado de lembranças.
Descansaram até as festas de fim de ano na fazenda
do conterrâneo Leolino. Estranharam a falta das frutas
européias, típicas da época, sobretudo as portuguesas,
exigências a que eles jamais renunciaram. Comemoraram
com o lauto banquete fartura de assados, farofas, vinhos e
champanhes franceses, doces de frutas variadas e os queijos
que recordavam os de Estrela, com a cura no ponto. Houve
missa celebrada na capela da fazenda. João comentou mais
tarde esse costume de construírem capelas nas fazendas e
ficara impressionado com a beleza do altar. As pinturas do
teto lembravam a casa de Vó Donana, em Caetité, dizia.
Ao deixar a fazenda amiga, depois do Natal, as
dificuldades somavam-se. Era plena a estação das chuvas.
Adotaram sair de madrugada e pousar antes do entardecer.
Resto de dia tempo para caça, pesca, colheita de frutas, de
palmito.
Atingem a Mantiqueira metem-se entre as névoas,
resvalando desfiladeiros. A tropa entranha vegetação cerrada
escalando penhas e fraguedos. A água despencava do céu.
As capas do Oriente caiam sobre as ancas dos animais
como cabanas ambulantes a proteger cavaleiros e cavalos.
João se via abafado sob o manto grosso e pesado a defendêlo
da chuva e da ramagem que fustigava.
Acima do amontoado de nuvens arranchariam na
primeira estalagem. Cavalgavam os desafios no dorso dos
rochedos, -venciam lufadas de ventos, uivos lancinantes
entre a vegetação adentrando a tempestade anunciada,
trovejando horas atrás.
Raios cruzavam o céu. Trovões estremeciam a terra.
Clarões abriam e fechavam o abissal espaço e borbotões d
água despencavam as nuvens negras. Relâmpagos,
ziguezagues serpentes de fogo feriam a mata como nunca
viram. Os raios cada vez mais ensurdecedores caiam nos
penedos e a chuva descia furiosa. Chovia, chovia. Cavalos
e cavaleiros amedrontados todos tentavam conter os muares
desencorajados. Nas montanhas as tempestades mostram a
força dos céus, os horrores do inferno, a fragilidade humana
indisfarçável diante do fogo tempestivo, voraz, a esganar o
que pela sua frente se interpõe.
João escreveria um dia esses sobressaltos horrorosos.
Assistira o pai antes entre os papeis da Umbuzeiro ou em
meio ao cotidiano dos vaqueiros, agora ordenando
persuasivo, dogmático, o seguir em frente apesar dos
estampidos de fogo, aproveitando o clarão fugaz a assegurar
as trilhas certas entre os penhascos.
Vencida a marcha temerária atingem a cimeira
esperada e um panorama verde se abriu. A terra se oferecia
de presente. Ele jamais se esqueceria daqueles raios
beliscando a terra, os trovões, ecos retumbando pelas
entranhas das gentes. Nunca o abandonaria a sensação de
insignificância. Pela vida afora a imagem indomável da
natureza acompanhou-o. Aprendia para sempre, qual
desvalido ser, que a bonança sucede a borrasca.
Além, avistaram o primeiro rancho rodeado de
pastagens, alguns capões de mato e árvores frutíferas. Era
a promessa do céu.
Arrancharam. Domingos se dirigia aos homens ali
ancorados, os arrieiros e capatazes empilhavam os teréns,
os peões livravam os burros das albardas pesadas e
incômodas, das cangalhas e coxins, dos cabrestos, desatavam
as correias de couro cruzadas nas subidas e descidas das
montanhas, as sobrecargas, para enfim pendurar-lhes no
pescoço o bornal com a ração de milho necessária. Por
último passavam-Ihes a almofaça para depois soltá-los no
pasto, perto do rancho. Então afrouxavam aliviados do
cansaço.
– Tempestade feia no alto da serra, exclamou o
rancheiro, enquanto picava seu fumo. Vi os raios
chicoteando serra-acima. Chuva braba.
– Pensei de não chegar, respondeu Custódio,
conquistando a camaradagem do rancheiro, conhecido
barganhista. Esperteza que sobrava.
Sem camaradagem não se granjeava a boa vontade
essencial quando na dependência de estranhos, dizia. Sem
ela não se chegava a lugar algum. Uns precisam dos outros,
ainda mais quando tratamos com ciganices, afirmava. O
rancheiro tinha fama de ser um dos mais sagazes por aquelas
fraldas da Mantiqueira. Arguto e dissimulador davam-lhe
até o apelido de cigano.
O homem acudiu com o milho necessário, contou as
rezes para efeito da cobrança de pastagem, se dispôs a
pregar as ferraduras necessárias e alveitar os animais. Era
prático nisso, disse. Ofereceu-se para curar as pisaduras, os
aguamentos, a destiladelra, o catarrão, a papeira, o
garrotilho, a peste da goela, qualquer moléstia, todas ele
aprendera com os mais velhos. Até a peste de escancha,
que tratava com as frutas pequenas de “paulista”, como em
Sorocaba. Só não tratava de “erva brava” coirana, erva
lôca, icó, alecrim do brejo, mamoneira, timbó. Essas não
havia nas suas pastagens e se haviam comido foi pra lá da
serra, não tinha mais remédio. Vendia bem os seus serviços,
via-se.
Enquanto Custódio e Domingos ganhavam a simpatia
do caboclo, José Maria averiguava as condições do rancho:
o telheiro sem buracos, as pilastras de madeira, as paredes
de adobe e observava o chão onde os couros seriam
estendidos. Como se fossem camas. Os couros protegendo
as cargas, jacás e albardas paralelas a dividir o espaço,
improviso de dormitórios.
À hora das noas a arranchação estava preparada. Os
animais já vagueavam nas pastagens. Os peões estenderam
as capas para secar. Arrumaram a trenhama. Os volumes
maiores apertados dentro do rancho cercavam uma área
de três metros em quadra, na qual, num dos cantos ficava
uma passagem para o interior desse improvisado
compartimento. Noutro canto guardavam os fardos mais
valiosos, quase sempre menores e mais sujeitos ao roubo.
Do lado de fora dessa estranha parede dispunham as
cangalhas umas sobre as outras, depois as cilhas
dependuradas juntas, qual fitas coloridas, os cabrestos, as
bruacas, os odres e couros. Tudo ordenadamente ajeitado
de maneira que quando fossem retirados nenhum seria
esquecido. As selas mais ricas empilhavam-nas perto da
bagagem do senhor da tropa, Abriam-se as redes nos apoios
apropriados e se entregavam, os mais abonados primeiro,
ao justo descanso. Os insetos lhes permitiriam a sesta graças
às redes de juta tecidas a maneira dos nativos: esfiapados
fios dependurados a impedir a entrada dos bichinhos.
Do céu quente caia a paz cansada como eles, um
clima pesado e morno de preguiça onde apenas se ouvia
o murmúrio pachorrento do riacho a correr perto do casebre
cercado de bambu. Nenhuma brisa. Nada bulia as
bananeiras, as mangueiras, as árvores ramalhosas
cumpliciavam o entardecer.
A sesta podia perder-se em horas. Custódio
determinara que na manhã seguinte prosseguiriam a
viagem.
O sol se escondia devagar atrás da serra, as sombras
se estendiam adormentadas, os cantos últimos do mato
sussurravam os suspiros do dia. Pelo rancho caiu um arrepio
vago de saudade. A rodada de cachaça passava de mão
em mão. Era esquecer as repetidas tempestades na
Mantiqueira durante a travessia.
Nas serras as noites frias arremedavam-se úmidas As
violas ressurgiram das bruacas para desabafar a alma
sentimental dos caboclos:
“No dia vinte nove
saimo do sertão
zio no consolo
Chicão no lampião.”
“Maria, por caridade,
não ama tropeiro, não.
Tropeiro é home bruto,
bicho sem combinação.”
“Morena, por caridade,
num ama tropeiro, não.
“Todo tropero é tretero,
todo cigano é ladrão.
Tropero compra fiado,
deixa a conta pro patrão”.
“Maria, escute o conselho,
sossega seu coração.
Maria, por caridade,
tenha de mim compaixão”.
O canto continuava lamentoso:
“O tropeiro não goza prazer.
Sua vida e continuo penar;
Chega de tarde no rancho,
que trabalho, meu Deus, vai dar!”
“Lourenço, abra a porteira,
que a tropa do Sérgio evem.
Tem uma mula de guia,
que não respeita ninguém.”
Alguns cantavam acompanhando a viola, outros
trocavam notícias, histórias no silêncio da noite, superstições,
crendices, receitas de mesinhas e feitiços pra quebrar a
inveja. Os mais cansados adormeciam logo sobre as peles
enrolados nas cobertas tecidas com os trapos coloridos.
Serras ladeirosas subiam, desciam, varavam várzeas,
florestas, capões, dia após dia sem mudança outra que
arrumar as bagagens em ordem, ocupando o menor espaço
possível, para dar lugar a outros. Cada tropa nos ranchos
maiores fazia cozinha própria. Depois das refeições
trocavam informações sobre as regiões percorridas, falavam
das aventuras amorosas, enquanto as violas de Queluz
tangiam acordes cantadeiros de versalhadas langorosas,
trovas pesarosas:
“Você me chama tropeiro,
eu não sou tropeiro, não.
Sou arrieiro da tropa.
Tropeiro é meu patrão.”
“Comendo feijão com torresmo,
escolher pra cama um lugar,
triste vida do tropeiro,
não tem ninguém pra amar”.
Custodio gostava daquela vida, dos gorjeios das violas,
do proseio sertanejo, versos-de-pé-quebrado, arrimado rude
de sentimento. Tropeiro rico cuja probidade inquestionável
garantia o transporte das mais requintadas e delicadas
mercadorias: ouro e pedras preciosas, missivas de confiança,
dinheiro em espécie, numerários da metrópole para o
interior, pratarias, sedas, vinhos, espelho, armas e munição
e quantos aparentes nadas de frivolidades, rendas, lenços
e tranças de cabelos loiros ou negros. Vestido em roupa de
excelente qualidade, chapéu do Chile, echarpe de seda
com presilha de ouro, punhal de prata no cinto. Não por
agressividade, mas segurança, prudência que leva um
homem a valer por dois. Objeto cortante indispensável,
tanto quanto o cantil de prata pendurado na cintura.
Serventia contra inimigo, quase tudo: cortar mato,
destrinchar caças, limpar peixes, consertar arreios.
Quando o desandamento de caçador graduava com
a fome, acossava animais a faca afiada e fininha de ponta.
Preparava a carne para assar no espeto, descascar ananás
do campo, preparar a charqueada se preciso. Impunha
respeito. Nas esticadas prosas cavalgadas picada afora,
Custódio exaltava a beleza da profissão:
– Sem as tropas era difícil ser fazendeiro serra-acima.
Serra abaixo haviam de ficar todos no litoral sem o ouro,
as pedras e os mantimentos. Sem elas as estalagens, os
pousos e os arraiais que pipocavam no rastro das passagens
não existiriam. Vilas iam rompendo ano a ano. Caminhos
de índios desembestando estradas. Com as tropas o leva e
traz notícias, costura fatos, arremata idéias e sonhos de
soberania. Sem elas o aldeão usurpado de agregação não
desenharia a pátria grande, continuada verde nação. Falava
galhofeiro sem a preocupação que ouvissem.
– Aqui e ali os caminhos bandeirantes quase perdidos,
sem vida nem alegria, nem novidades de notícias, mexericos
de jornais, de livros e seus autores novidadeiros. Custódio
olhava os companheiros e gritava ingerizado: – Sem as
tropas os ingleses nos engolem com casca e tudo.
Depois de adulto João rememorava esse tagarelar
entusiástico, às vezes até plagiando oratória:
– “Que alegre tintinambular me canta agora aos
ouvidos! Que lírico madrigal, cadente e argentino, vem
carrilhonando estrada em fora! Ah, é uma tropa. À frente
trota a madrinha com um colar de campainhas por peitoral.
Vem lépida, contente, estimulada pela doce música...
Embala-se, assim a alma com as suaves toadas de minha
infância... poética fantasia de tropeiros roídos de saudade
que, à noite, descantam nos arpejos da viola as suas
melancolias de eternos desterrados, e de dia sentem que o
jornadear é mais suave embalado pelo carrilhão sonoro,
...refrigério para a nostalgia.”
Levantava o sol e a tropa reunida outra vez se punha
a caminho ao bimbalhar dos cincerros e guizos da madrinha
ataviada da cabeçada de prata, cilhas coloridas, sacudindo
em trote batido os baús de couro tacheados de latão.
O patrão da tropa, Domingos, sempre na frente com
o primo José Maria, o menino João e os ajudantes mais
íntimos. Noites bem dormidas, justas e bem esquecido
cansaço. Mais léguas adiante medidas de paciência. Poeira,
pedregulhos, abrolhos seixos perdidos nas enxurradas.
Beiradas de mata fechada, sem beiras nos campos, nos
vazios imensos.
Madrugada escura partiam freqüente dois capangas
encarregados de abreviar as picadas, preparar as apeadas
e deixar avisos dos empecilhos se houvesse. Ou o que
houvesse, enchente, ponte caída. O madrinheiro e o tocador
ajuntados adiantavam a cozinha. Todos armados, mas
sabidos de morte certa em caso de traição. Não fossem os
clavinotes os assaltantes teriam levado as mulas dos
dianteiros. No calcanhar da tropa defendia o arrieiro, lenço
vermelho ao pescoço, botas de cano alto, cinta de couro
larga onde guardava a faca e o revólver. De confiança
suprema todos.
Era embicar num povoado e se pavoneavam os
vaqueiros a espantar rotinas, sacudir lenços e chapéus
redondos de couro curtido e suado de tanto sol. Rinchos
das mulas, berrantes louvando a povoação, as mulheres
nas janelas espia não espia.
– “Tocado bate no couro e a mula urra também”,
cantarolava um.
O arrieiro se deschapelava à direita e à esquerda,
chapéu bracarense de abas largas, sorridente e mesureiro
no seu cavalo arreado com apuro. Domingos e José Maria
iam discretos, levavam muitos valores, eram estrangeiros,
preferiam não chamar mais atenção do que as centenas de
bestas já despertavam.
Custódio, conhecido de todos, vestia lenço de seda
no pescoço atado com um anel de ouro e botas lustrosas,
nos calcanhares retiniam as esporas de prata.
No cabeção de sua sela faiscava uma longa corrente
de prata prendendo o “guampo” de chifre, cantil exótico
comprado no Sul, que lhe permitia beber água mesmo
montado. Tinha suas indumentárias prediletas e exibia. João
vestia a miniatura das tropearias. Luxos de Sorocaba. Menino
esperto enxergava olhares e não esquecia.
Tropas encontravam-se pelos caminhos. Cada uma
formando um lote de sete burros e cada burro carregando
até oitenta quilos. Era o usado. Domingos preferira formatar
a alimária em vários lotes. O amontador, acostumado com
os animais bravios, comandava as centenas de cabeças
avulsas levadas para vender pelas estradas do sertão,
seguido pelo arrieiro que assim satisfazia a vaidade e gosto
de mostrar o seu chapéu bracarense em mesuras de tira e
põe.
Nas margens do Rio Grande apanharam os cavalos
de raça. Nestes Domingos, Custódio e José Maria
cavalgavam por quilômetros comedidos, aproveitavam as
trilhas altas e seguras. Nem cansavam os animais, nem os
mimavam em demasia. Soberbos os eqüinos sobressaiam
à tropa de burros rudes trotando desde Viamão.
Na Serra das Vertentes, entre grotas disfarçadas por
capão de mato, foram acuados por bandidos. Serventia de
experiência quilombola Adeulino os livrou de peçonha
maior, de susto mordido no peito. Apanharam rumo nos
afluentes do São Francisco, esqueceram as tocaias da
Mantiqueira. Contornavam os escarpados abruptos da Serra
do Espinhaço. Espigão abrolhado de seixos roladores
ameaçando o equilíbrio dos animais pelas ladeiras
pedregosas despencadas serra abaixo. A romagem ia lenta,
carecia cuidado. Olhos d água rareavam já. Riacho havia,
seguiam por eles, ora por margem de rio garantia de água,
de peixe e caça.
Nas Gerais saudaram o gosto do sol quente, noites
frias nos cerrados do sertão de mato ralo, sem os embaraços
de floresta virgem. Deixaram as veredas no poente, torcendo
para o Leste nas trilhas de Espinosa. Subiam em direção da
Bahia.
Os tapuias abandonaram ameaças. Persistiam as terçãs
malignas, febres palustres, a maleita. Era cuidar e contar
semanas para estar em casa.
Ainda em Minas foram alguns da tropa acometidos
da febre intermitente do Rio Jequitahy. Não obstante a
febre continuaram a viagem em busca do vilarejo de Grão
Mogol, esperança de recursos médicos. Faltavam oito léguas.
Chegaram à familiar Fazenda Rocinha do amigo Coronel
Domingos Soares. Recebidos com alegria em casa mais
seria se não fosse o lastimável estado dos enfermos.
Ligeiro o Coronel tomou as providências que o caso
exigia. Despachou um portador à Vila a carrear remédios.
Domingos e José Maria eram os doentes em estado mais
grave. Antes mesmo de chegarem os socorros Domingos
José foi acometido de mais forte acesso. Não resistiu. Faleceu
no dia 16 de março de 1869.
Em enterro solene, acompanhado de vaqueiros,
berrante soando triste, chapéus nas mãos, lenços e gestos
fúnebres sepultaram o patrão em Grão Mogol, nas Minas
Gerais.
O Coronel Soares, depois das providências tomadas,
chamou a si os cuidados com a tropa e despachou um
portador para Caetité, distante cinqüenta léguas. Travessia
ingrata de galope angustiado afim de avisar a família.
João assistia a tudo. Chorar não, recomendou-lhe o
pai. Sofria. Longe de casa obedecia, escutava e espiava as
idéias de todos. Assustados seus olhos azuis cresciam junto
com a despedida. Cresceram mais quando o primo José
Maria em ato de desespero engulosou de frutas proibidas
e também morreu. Compreendia que estava só.
João acompanhou os enterros da sua infância. O
Coronel chamou-o, sentou-o no escritório. Falou-lhe como
a um adulto:
– Seu pai foi meu amigo. Sossega nesta casa até que
os seus tios venham buscá-lo.
– Fico agradecido, senhor. Dei ordens a Enedino,
filho de Sadoc, escravo de confiança de meu pai, para que
cuide da tropa. Queremos perturbá-lo o menos possível,
respondeu-lhe João, como se igual fosse.
Soares, respeitoso, apertou-lhe a mão.
O portador levava a dor galopante do menino escrita
em carta que só mãe lê. Dor, memória agravada, cicatriz
permanente forjando o caráter e os comportamentos.
João, que era também Fernando, o nome de Santo
Antônio, rezou o que sabia, engolindo sentimento que
menino homem não mostra, enquanto esperava os tios e
contava léguas, dias, noites de lua minguante, crescente,
lamparina apagada chamando o sono, o tempo passar mais
corrido, dia olhando longe, esperava notícia demorada,
saudade da mãe, de colo morno.
Engolia idade, medo, fragilidade.
Enguele lembrava:
– A notícia chegou. Meus irmãos seguiram para Grão
Mogol, Manuel Faria e Francisco Fernandes Pereira.
Ansiedade crescente angustiava o desamparo abraçando
minha viuvez. A orfandade dos meus filhos doía a
insegurança do inesperado futuro a abrir-se em abismo de
lembranças de Domingos José a discorrer morgadios,
iniciações, como se adiantando presságios.
Contaram-me que o Coronel Soares lhes entregou a
tropa, o numerário, os bens, os mesmos jaezes das
montarias, alguns de prata, esporas, trastes miúdos e
maiores. Custódio, com febre ainda a queimar-lhe as
entranhas, buscara os minguados recursos possíveis em
Montes Claros.
Pus-me à porta a esperar. Avistei, antes de ouvir o
tilintar dos cincerros, a madrinha à frente. Sem ornatos ou
fitas. Apenas duas botas dependuradas balançavam
acenando um adeus.
João Fernando abraçou-me. Seus olhos azuis me
trouxeram a luz que adquirira nesses poucos meses antes
dos seus sete anos.

Mãe de pegação, Cristina Agostinho

Desde mocinha, Da Glória ficava de zoinho e zovido
compridos no trabalho das véia da casa. Que isso já vinha
de berço. Bisavó, vó, mãe, era tudo parteira. Um dia sua
vó lhe disse:
– Óia, menina, eu vou te ensiná como é que faz. Cê
vai ser parteira. Seu zói tá indicando.
E explicou tudinho. O primeiro sinal pra saber se a
mulher tinha condição de ganhar o neném em casa, era
dando o toque. Se num deu dilatação, num cedeu nada,
aí já caça outras providência. Cada contração que vem cê
tem que saber se a mulher tá sentindo o cordão abrindo. Cê
tem que saber isso pra ser parteira. Da Glória ainda
perguntou:
– Será que vou ter coragem, mãe Dindinha?
– Claro que vai ter coragem. Tudo que a gente ensina
cê aprende!
O primeiro parto, ela fez com 15 anos. Sozinha,
sozinha. Chegou um vizinho chamando e dizendo que a
mulher tava incomodada:
– Da Glória, cê num é véia, mas hoje vai ser. Porque
vai ter de fazer o parto da minha muié.
Da Glória foi. Com muito medo, mas foi. Foi rezando
pelo caminho: Ô, Senhor, me ajuda! Não me deixa entrar
em apuro, não, meu Deus!
Quando chegou, foi logo fazendo toda a preparação.
Pediu pro marido: ferve tudo, ferve a tesoura, ferve o
barbante. Ferve tudo, pelo amor de Deus! E me dá uma
toalha limpa.Virou pra mulher e falou: ajuda aí, Maria, dá
força! Ajuda que primeiramente Deus, em segundo eu,
vamo te ajudar. O neném veio nascendo... ai, Senhor!...
sentiu um frio na espinha. Daí já sabia a medida do cordão
pra cortar: dois dedos fora do imbigo e depois mais três pra
cortar e amarrar com barbante. Três amarradinhas pro
sangue não sair. E pronto! Depois que passou, Jesus! Foi
muito louva-a-Deus! Aí, ó, pum pum pum, o pai soltou uma
porção de morteiro pra avisar todo mundo que o menino
tinha vingado.
Muita gente já louvou a Deus e a Da Glória. E é voz
corrente do povo do lugar:
– A parteira daqui das melhor, que quando ela faz
um parto, olha pra mulher e desconfia que nem ela nem
nenhuma parteira faz, ela manda correr pro médico e o
que ela diz aqui o médico lá diz a mesma coisa, é Da
Glória.
A vida toda foi assim. Quando ela pensava que não,
lá vinha um chamado. Já nos tempos mudernos, quem
louvou a Deus foi o Marquinho da pensão, moço instruído
que, ninguém sabe por que, deixou a cidade grande pra
morar nesse fim de mundo. A mulher dele já tinha feito
duas cesarianas, mas eles queriam um parto normal. Muito
estucioso, Marquinho leu tudo num livro chamado ‘Onde
não há médico’, e se preparou pra fazer, ele mesmo, o
parto em casa.
No dia, fez tudo direitinho. Botou água pra ferver,
mediu o tempo entre as contrações e... na hora agá, não
agüentou o tranco: não vou dar conta! Foi correndo pedir
arrego a Da Glória. Ela chegou, simples... pegou a luva,
botou o lenço na cabeça, pôs um cepinho encostado na
beira da cama, fez o rodilho com uma toalha branca e
mandou a mãe ficar de cócoras.
– Foi uma coisa mágica! – o Marquinho ficou
assombrado: desceu um anjo de luz ali, naquele momento.
Da Glória já perdeu a conta de quantas crianças
aparou. Antigamente fazia dois, três partos por mês: já tenho
filho de pegação com 30, 40 anos, que se eu vê hoje, não
conheço mais. Nenhuma mulher morreu. Nem antes, nem
durante, nem depois. Porque ela cuida o tempo inteiro da
mãe e do recém-nascido. Sua farmácia fica bem ali, no
quintal, onde tem remédio pra tudo. Pra ajudar o neném
nascer, chá de quiabo, que tem coisa que é pra escorregá,
né? Pro banho da parida e a esfregação, durante três dias,
ela pega folha de arruda, mastruz, palma e alfazema, soca
tudo com alho, mistura com um óleo e dá a massagem.
Essa é a receita pro lado de fora. Pra curar por dentro, só
tomando ‘xixi de neném’. Até o pai da criança toma esse
xixi, num sabe? Pois ele é feito de cachaça temperada com
ervas. As mesmas ervas usadas na esfregação mais
hortelãzinha, poejo, alevante e arnica.
– A cachaça serve pra desinflamar e as erva ajuda a
curar por dentro. Pra ficar bem apurada, é bom preparar
um mês antes do neném nascer. Tem gente que faz na
hora, mas num fica muito bom. Aí só bota alho, cominho e
um pouquinho de mel.
A sabença de Da Glória não pára por aí. Um mucado
de folha de arueira e caju pra fazer chá e banho é bom pra
uretra, rim, bexiga. Chá de coentro, folha de algodão e
jasmim, tranqüiliza o espírito. Folha da amendoeira, da
manga espada, tudo é remédio Tem coisa que remédio de
mato cura melhor que o de farmácia. No seu quintal,
novalgina, anador, é tudo nome de planta.
– Tretréqui, por exemplo, é erva boa pra febre, pra
gripe, resfriado. Até pra cólica. Boldo é pra fígado, pra dor
no estômago pra comida que faz mal. Alfazema num é só
cheirosa, é um santo remédio pra gripe, pra adulto e pra
nenenzinho. Romã é bom por dentro e por fora. Chá da
casca estanca hemorragia e chá da semente gargarejado
cura a garganta. Gengibre também é certeiro pra inchaço
de amidlas. E baga de mamona batida com óleo de rícino
é um purgante tiro e queda pra botar o que não presta pra
fora.
Da Glória sabe que leitura traz conhecimento, mas
não dá sabedoria. Ela fez o curso dado por Deus e tem um
baita orgulho de ter ensinado muita coisa pro médico do
posto de saúde:
– A diferença entre as parteira e os médico tá na
mão. Nós primeiro acarinha, faz massage na barriga da
muié. Eles não, já vem cutucando, furando e cortando
com os instrumento.
Em casa, Das Graça, a filha mais velha de Da Glória,
fez até curso de enfermagem e sabe fazer parto. Mas ela
num tem muita coragem, não, diz a mãe, que confia mais
na outra ponta da família. Das Dor, a neta, um tico de
gente, tá sempre de zoinho comprido no oficio da vó.
Quando vê Da Glória sair, a qualquer hora do dia ou da
noite, com a sua bolsa amarela de listras, é a primeira a
pedir pra ir junto. Já é de milho, né? Tá no sangue!

Chuleado, Eneida Machado Milet

CHULEADO:
Do Dicionário Houaiss
Chulear:
– (cost.) Dar pontos na borda de um tecido
cortado, para que não desfie.
– Ficar na expectativa de obter alguma coisa
muito desejada.

Campainha tocou, eu no telefone com dona Mariquita
Bicalho, tentando explicar diferença entre chuleadeira e
cerzideira. Velhinha teimosa, mandona, queria me virar
em cerzideira de qualquer jeito, para fazer remendo em
terno chique do neto que estuda em Belorizonte.
“– Dona Mariquita, sou chuleadeira, é diferente...
Cerzideira conserta roupa usada, quando rasga ou púi.
Chuleadeira arremata roupa nova, abre casas, prega botões.
Tem gente que faz as duas coisas, eu especializei só em
acabamento”. Pela janela vi Zulmira, fiz sinal que esperasse,
mostrando o telefone. Arrematei conversa com a dona,
assim meio brusca, fora do meu estilo: “– Olha, dona
Mariquita, procura a Daquinha do Ozório, serviço dela é
perfeito, garanto p’rá senhora. Fala que foi a Lina do Adão
quem indicou, tá?” Desliguei. Deve ter ficado fula. Faz mal
não, descer do trono vez em quando é bom treino de
humildade. Nem fiz por mal: estava era aflita com a Zulmira
me esperando. A gente se conhece, mas nunca teve
amizade p’rá visita. O que seria?
Queria era avisar que o Gilvan estava internado na
Santa Casa, onde trabalha de enfermeira.”Olha, Lina, falou,
meio sem jeito, vim aqui porque sei como você é caridosa
e o Gilvan não tem ninguém. Dona Valmira tentou contato
com família dele, no Abaeté, ninguém ligou. A ex continua
naquele destempero, os filhos cada qual mais descabeceado
– o único ajuizado mora fora do Brasil. Se você estiver
disposta, vai lá, visita, leva umas coisinhas. Precisando ele
está – você vai fazer grande caridade...”
Nem sei como me despedi dela, abobada com a
notícia. Pensando bem, era de se esperar: depois da
separação, anos atrás, voltou cá p’rá Bela Vista. Vivia de
pequenos serviços, o suficiente para sustento do quartinho
de pensão e bebedeira. Cruzei com ele duas semanas atrás,
mais magro, pulsos fininhos, queixo saliente. Devia estar
são, pois baixou cabeça e virou a primeira esquina. Estivesse
bêbado ia me seguir até perto de casa, como vinha fazendo,
sem jamais ter coragem de me abordar. Agora essa... Esperei
sexta-feira – dia de folga do doutor – e fui lá, fazendo de
boba, caçando consulta. Parece bobagem, esse disfarce,
mas no interior tomam conta da vida da gente, passo a
passo. Vivi sempre na reta, escapei das tentações p’rá manter
nome, depois de velha ia estragar tudo? Forcei encontro
“por acaso” com dona Valmira, pedi conversa particular –
nela eu confio. Séria e exigente, ganha de qualquer médico
na dedicação, deve ter nem tempo de ficar vigiando os
outros, comentando...
Me explicou o estado dele – cirrose hepática no último
grau, diabetes, talvez precisasse amputar pé... Fez lista das
coisas mais urgentes, na verdade o pobre não tinha era
nada – meias, cuecas, pijamas, chinelos... Sugeriu que eu
fosse vê-lo: “Não, dona Valmira, ia ser um choque para ele
e para mim. Depois, o povo fala demais... A família não
quer saber dele, mas se contam da minha ajuda logo aparece
alguém p’rá atrapalhar. Faço o que puder, mas estou
correndo de confusão e falatórios”.
Chegando em casa destampei na choradeira. Custei a
lembrar onde estava o bauzinho de couro, primeiro
presente, onde guardei tudo dele. Mãe queria que eu
devolvesse. Pai, mais sensato: “– Devolver como, Gini, sair
atrás de um fugitivo, caçar sarna p’rá se coçar? Guarda
tudo, em lugar bem escondido, espera acalmar, depois dá
um fim nisso”. Quarenta e um anos, foi o que esperei. O
cheiro é de coisa velha, mofo – “Coisa guardada demais
tem cheiro de defunto” dizia mãe. Defunto bem vivo, pelo
jeito. Não fosse, p’rá quê tanto choro? Lá estavam a aliança
bem larga como ele escolheu, o reloginho Tissot, correntinha
de ouro com medalha “Deus te guie”, anel com cinco
pedrinhas de rubi enfileiradas – vi na vitrine do seu
Gasparino: “Olha, Gil, parece romã, que lindo!” Fim do
mês me entregou caixinha de veludo – “Estão aí, tuas romãs.”
E um poema do Castro Alves, copiado a meu pedido –
”Teus olhos são negros, negros, como as noites sem luar...”
assim cantou em serenata na minha janela, depois do
primeiro encontro.
Primeira vez que a gente se viu, envinha eu descendo
da escola, dei com o rapaz bem na porta do Bar Marajá:
moreno bonito, cabelo esticado a brilhantina, calça azul
marinho, camisa de cambraia bege. Levava copo de cerveja
à boca, parou o gesto, me olhando, até eu dobrar a esquina.
Virou compromisso – todo dia me esperava passar. Primeira
conversa foi um custo, mas acabou acontecendo. Pai logo
soube, arrepiou:
“– Não quero saber desse namoro. Pau-de-arara saído
do nada, ninguém conhece, vai ver tem até família na terra
dele. Tira o cavalinho da chuva, mocinha. Cria juízo”. Mano
não deu trégua: “– Minha irmãzinha, tão lindinha, metida
a intelectual, quem diria, namorando caixeiro-viajante com
cara de galã da Pelmex”. Pelmex era companhia de cinema
mexicana, mestra em dramalhões, tipo essas novelas do
SBT. Salvava os filmes era a trilha sonora, cada música
mais linda que a outra – tangos, boleros e os intérpretes,
de primeira: Toña la Negra, Libertad Lamarque, Frei José
de Guadalupe Mojica, Pedro Vargas... Com o tempo mano
simplificou: olhava p’rá mim e cantarolava ou assoviava
“Solamente una vez...” Eu trincava de ódio. Nestor nunca
aceitou o Gil, nem quando consegui dobrar o pai.
“– Olha filha, vou respeitar sua escolha. Você nunca
trouxe aborrecimento p’rá nós. Seja em casa, seja na escola,
só tem dado satisfação. Por isso vamos dar uma oportunidade
ao rapaz”. Falou e cumpriu.
Começamos namoro oficial, no sofazinho da sala de
visitas. Pai vinha dar uma palavrinha, mãe ficava batendo
chinelo lá dentro, lá pelas nove horas servia cafezinho. O
sinal para encerrar era ela raspar garganta. Apaixonadíssima,
doía me separar do moço bonito, fala macia, enormes olhos
esverdeados. Pegou livro de poesia na estante, sem pedir
licença nem nada, lia p’rá mim naquela voz cantada, pura
música – “Espumas Flutuantes” – Castro Alves. Nestor tinha
o maior xodó com o volume encadernado de marrom,
trazido de umas férias na Estrela – história meio misteriosa,
nunca entendi direito: a primeira página tinha sido
arrancada, talvez por dedicatória e lá dentro, na margem,
nome escrito com letra bonita: Carlos Lúcio Caetano. Seria
roubado? Tozinho nunca mais quis saber do livro, tanta
antipatia do Gilvan.
Namoro ficou sério. Com dezoito anos fui pedida em
casamento, na maior cerimônia. Além da aliança ganhei o
reloginho de pulso, marca “Tissot”, verdadeiro luxo. No
mesmo dia, na despedida, Gil me pediu para largar os
estudos. Prometi parar no fim do ano – fazia o segundo
ano de magistério. Lembro da Veva passar na alfaiataria,
pedindo ao pai para não deixar, em nome dos professores.
“Menina inteligente, estudiosa, devia era de continuar
estudando”. Deslumbrada, muito nova, fiz cara feia e parei
mesmo. Arrumei enxoval completo, no maior capricho. Pai,
de tão entusiasmado, fez questão de abrir caderneta na
Casa Lacerda. “– Loja de rico, não sei a serventia de tanto
luxo”, era mãe, torcendo nariz. Mas bem que comprou
umas coisinhas para ela também e afinal me ajudou nos
preparos, naquela sem-graceza de sempre. Casamento foi
marcado para maio de 59. Em janeiro, lembro desse dia
direitinho, até da roupa: saia godê simples de failete marrom,
blusa cigana de seda verde, apareceu na nossa porta dupla
de homem – pai depois disse que estavam armados –
procurando meu noivo. Ninguém dormiu, tanto medo.
Ainda mais depois de não achar o Gil no hotel nem nos
outros cantos de costume. No outro dia, cedinho, a notícia:
pegaram ele no Bar Marajá, bem folgado tomando cerveja
e levaram a força p’ro Abaeté, casar com mocinha
desonrada por ele. A casa ficou pequena para tanta gente,
parecia romaria! Cada qual aproveitando a situação como
podia, saboreando novidade. Afinal o apurado foi isto: a
menina, e nem era tão menina assim, mais velha que eu,
falada, mimada, estava grávida. Gilvan tinha passado por
lá, a serviço, deu umas voltinhas com a moça. Pai dela,
fazendeiro rico, ignorante e poderoso, forçou barra e meu
noivo casou, mudou, sumiu... Fiquei no “ora veja!”,
humilhação danada. Pai falou em matar – ele já gostava
bastante do “pau-de-arara”. Veio gente propor tocaia, entrei
na sala chorando: “Pelamor de Deus, pai, deixa ficar como
está, eu ia lá ser feliz com um homem desse? Madrinha
Balbina reza tanto por mim, e se Nossa Senhora fez isso
por proteção? Não prestou como noivo, ia prestar p’rá
marido?” Assim ficou. Segunda vez que pai me ouviu e,
graças a Deus, nunca ele olhou com cara de “Não falei?”,
p’ro meu lado.
Depois a Das Dores da Fia veio com recadinhos, ela
ia muito no Abaeté visitar o avô. Cortei na hora: “Raça
ruim, hein, Das Dor, fui falando, valia mais era ter deixado
o pai passar ele na faca. Esse homem não vale é nada.
Vou é contar ao pai e ao sogro dele, ver o que acontece”.
Sumiu de novo. Mas nesse tempo eu já tinha reagido,
trabalhava no ateliê com dona Violeta, voltara meu gosto
pela leitura, pelos programas de rádio.
Logo que aconteceu, fiquei, como se dizia na época,
numa fossa das mais fedorentas – faço questão de não
lembrar nem comentar tanta tristeza. Só digo que enxergava
tudo cinza. Até mãe amoleceu. Lembro dela me levar ao
chuveiro pela mão, me ajudando a lavar cabeça.
Me ressuscitou foi madrinha Balbina, entrando no
quarto bem cedo, barulhenta, enchendo espaço, alta e
gorda, cheirando a cravo e erva-doce: “Cadê minha menina
de ouro?” Brincadeira de costume, por causa do meu nome.
Me chamo Esterlina e isso pesou muito na infância. Na
chatura da adolescência criei coragem: “– Pai, donde foi
que o senhor tirou a triste idéia de me por esse nome de
Esterlina?” Me olhou devagar, com a cara divertida: “Pois
senhorita Esterlina, nunca vi nome mais alegre. Ester, sua
avó materna, animava qualquer ambiente, todo mês
promovia hora dançante para os jovens. Lina, minha mãe,
vivia cantando – até caderno de músicas achou tempo de
fazer. Confesso ter tido um pouco de dúvida, antes de te
registrar, até que vi a manchete no jornal de um freguês: ‘A
libra esterlina foi considerada a moeda mais valiosa do
mundo’. Pronto, resolvi. Lembra d’eu te chamar minha
moedinha de ouro?”Comecei a aceitar e hoje tenho o maior
orgulho do nome escolhido com tanto carinho. Mas ainda
prefiro ser chamada de Lina. Parece mais comigo. Foi toque
de condão a madrinha chegar daquele jeito, abrindo janela,
rindo. Renasci para os barulhos da casa: passo preto
cantando, louça batendo na pia, tique-taque do relógio
grande. Senti cheiro de café.
“– Que tal você começar a trabalhar, hein, mocinha?
Dona Violeta Cardoso precisa de moça caprichosa, para
aprender a chulear roupas finas. Está disposta a ensinar
desde o começo, e pagando...” Na outra semana comecei
– conhecia o serviço, sempre ajudei mãe nos trabalhos de
mão, chuleei as roupas do meu enxoval. Mas fazer
profissionalmente, com gente avaliando, era muito diferente,
deu medo. Bobagem, logo peguei confiança e gosto – Dona
Violeta explicava tudo detalhadamente, desde a escolha
da agulha de acordo com o tecido até o jeito de dar nó na
linha, para ficar delicado e não aparecer. Também o ponto
“– Olha, Lina, o ponto deve ser sempre do mesmo tamanho,
na mesma direção, Chuleio tem que completar a roupa, a
freguesa deve ter gosto de olhar”. Ensinou a fazer casa,
pregar botão com firmeza, alinhavar fecho-eclair. Exigia
que a gente lavasse as mãos e secasse com cuidado, antes
de começar. Na bainha da roupa mandava costurar
rendinha, para disfarçar os pontos. Quem pelo menos pensa
nisso, hoje em dia? Mesmo naquele tempo, não era toda
costureira que tinha esse capricho, não. Agora ninguém
sabe mais essas artes. Minha sobrinha mesmo, chegou aqui
toda pimpona, sainha curta, sem o menor acabamento.”Dá
essa saia aqui, Norma, num instante eu capricho no
acabamento dela”. Fez foi debochar. “– Trem mais antigo,
mãelina, roupa de hoje não precisa acabamento não – os
panos não desfiam, ainda mais cortado a laser”. Tá certo,
as coisas mudam, quem segura o tal progresso? Progresso
nas máquinas, porque nas pessoas não vejo muito progresso
não. Aprendi, desde menina: progresso é melhoria. Cadê a
melhoria que não tô vendo? Vejo é gente aflita, correndo
de um lado pro outro atrás de não sei o quê – é um
remédio p’rá dormir, outro p’rá acordar. Se morre alguém,
acontece alguma tragédia, normal é ficar triste, tristeza e
sofrimento sempre vão existir. Às vezes dá vontade de
encostar num canto e chorar pelo menos uma semana.
Chora, desabafa e volta p’rá peleja, nossa sina é essa, uai.
Hoje ninguém pode mais ficar triste, tudo vira depressão e
lá vem doutor receitando a tal da fluoxetina. O ginecologista
receitou p’rá Angelina lavadeira e a velha tá num agito
difícil de aturar..., mulher séria, viúva há anos, arrumou até
namorado mais novo. Ontem pediu aumento, está
endividada, tanto presente para o moço – o último foi um
celular. É isso, o progresso?
Lembro da mãe, das tias: moíam no serviço de casa
sem sombra de preguiça, seguravam barra pesada: filharada,
problemas de família... De noite acompanhavam novela
de rádio fazendo serviço de mão – crochê, tricô, pequenos
consertos, cerziam meias – outra coisa que ninguém mais
conhece ou faz. Depois era rezar terço cochilando e cair
na cama. Dormiam feito anjos. Nunca ouvi nenhuma
reclamando ou caçando remédio de farmácia p’rá dormir.
No máximo algum chazinho de horta. Tia Rita, filharada,
aperto de todo lado, ainda achava tempo de consertar
roupas velhas para dar aos pobres. Enterrou três filhos,
morreu com mais de noventa, alegrinha, seca por novidades,
tecendo crochê para dar de presente aos filhos. Isso eu
chamo de progresso.
Agora, as máquinas: Primeiro veio o zig-zag – o pai
logo trocou minha Singer antiga por uma nova, cheia dos
trique-triques. Fiquei encantada: além do zig-zag fazia casas,
pregava botões, bordava. Eu já trabalhava com a Ção, dona
Violeta tinha mudado pro Belorizonte. Ia ao ateliê fazer
acabamento fino – apesar da novidade, as roupas finas
ainda eram chuleadas a mão – e levava era coisa para
fazer na máquina, em casa. Às vezes, até serviços de outra
costureira. Quando chegou o overloque, babau... acabouse
meu ganha-pão. Máquina impressionante, vai aparando
a sobra do tecido e chuleando ao mesmo tempo. Com
mínimo de treino qualquer pessoa manobra ela, não requer
arte nem ciência. Perdi o emprego, achei desaforo me
rebaixar. A munheca da Ção não ia manter meu salário,
podendo pagar o mínimo ou até menos a uma overloquista.
Me dispensou sem a menor cerimônia, nem direitos pagou.
Nestor ficou bravo, falou em reclamar na justiça, propôs
pagar advogado. Deixa, falei, trem mais aborrecido, briga
por dinheiro... Puxei o pai nesse assunto, morro de vergonha
de os outros ficar me devendo. Quem deve tem de pagar,
sem esperar reclamação. Ou não? Fiquei vingada na hora
que dona Carminha Malaquias resolveu voltar a fazer
roupas aqui na Bela Vista. Freguesona da minha antiga
patroa, encantada com o capricho do meu acabamento,
foi caçar costureira em Luz, desgostosa com a mudança de
dona Violeta. Quando resolveu aceitar a Ção exigiu meus
serviços. Estou ouvindo ela falar, naquela pose calma, voz
rouca: “Overloque nas minhas roupas, não, muito grosseiro.
Me chama a Lina do Adão alfaiate, para os arremates gosto
é dela!” Quem pode contrariar freguesa mão aberta, fazendo
média de um vestido por mês? A outra teve de calçar a
cara e me ligou: “– Lina, meu bem, estou precisando de
você p’rá me quebrar um galho!” Aceitei por consideração
a dona Carminha e por distração. Na verdade adoro esse
serviço: tesoura amolada, aparo as beiradas no capricho,
escolho linha e agulha – pois cada pano tem sua exigência:
tecido fino requer agulha fina, delicada. Se estiver rombuda
ou enferrujada, sai esgarçando os fios, um horror. Só de
pensar fico aflita. Depois as casas, se a roupa leva botões –
nas roupas muito finas ainda faço a casa à mão, como se
fosse bordado. Quase ninguém repara nisso, eu sei, faço é
para meu próprio prazer. Afinal, fora as necessidades da
família, só me ocupo das roupas de dona Carminha e das
meninas da dona Chiquinha. Essas me contratam por dia,
para fazer consertos, chulear vestidos, pijamas e camisolas
feitas pela costureira. Isso duas vezes por ano. Cobro
baratinho, vou mais é por amizade. Elas encomendam
quitandas, empadinha, olho de sogra, cajuzinho. Ou a gente
está comendo, rindo dos casos antigos ou acompanhando
a Célia na cantoria, enquanto eu costuro. Parece festa. Mas
fosse contar com meu trabalho para sustento, eu morria de
fome. Agradeço é ao padrinho Du, todo ano mando
celebrar missa por alma dele. Vejo direitinho ele falando:
“– Compadre Adão, precisa cuidar de aposentadoria,
deixar pensão p’rá comadre Geni, a gente tem de prevenir.
Já pensou ela ficar no desamparo, sem um ganho?” E não
falou uma vez só não, foi muitas! Pai ganhava bem, alfaiate
caprichoso, vivia cheio de serviço. Trabalhou uns anos de
aprendiz com vô Genival, depois abriu ateliê próprio, no
centro da cidade. “ADÃO ALFAIATES” – placa pintada de
verde, tesoura de um lado, carretel de linha com agulha
espetada, do outro. Sempre impliquei com “alfaiates”,
achava que tinha de ser “alfaiate”, p’rá combinar. A gente
não tinha luxo, mas nunca passamos aperto. Pai resolveu
escutar o compadre, mas antes de conseguir arrumar a
papelada a mãe se foi, enfarte fulminante. Quem acabou
aproveitando foi ele mesmo e eu. Finou entrevado na cama,
doença mais esquisita. Valeu foi o dinheiro do padrinho
Du. Lembro dele rir com carinha boa, quando eu falava:
“– Vou ao banco, buscar o dinheiro do padrinho Du”. Só
não dava p’rá pagar enfermeiro. Eu mesmo limpava, dava
banho, faltava ele morrer de vergonha. O mano quis ajudar,
mas ainda ganhava pouco, não aceitamos. Doloroso...
Cuidei dele cinco anos. Fui ficando cansada, emagrecida,
avoada. O doutor ainda complicou a situação:
“– Lininha, falou na maior intimidade, você precisa
descansar, tire uns dias de férias, adianta nada ficar assim.
Não sabemos quanto tempo seu Adão vai durar, melhor
reservar suas forças”. Arranjasse alguém para tomar conta
do pai uns dias – viajar, quem sabe uma fazenda sossegada,
podia contar com ele, até questão de dinheiro. Fazenda
sossegada era a dele mesmo, ainda hoje faz a festa lá.
Assustei, cabreira, mas confesso ter ficado alegrinha, lá
dentro de mim. Novidade alguém se importar assim comigo,
ainda mais chamando de “trintona sacudida” e “olha que
beleza de pele você tem, lisinha, macia...” passando a mão
de leve no meu braço, eu já com meus quarenta e dois...
Tivesse dado trela, podia ter sido até bom. Mas, esgotada,
há tanto tempo sem treinar com homem, nem pensei em
embarcar nessa. Tive foi medo, nunca mais consultei com
ele e quando ele vinha ver o pai eu sempre dava jeito de
chamar alguém de companhia. Posso ter perdido bons
momentos, por lerdeza e respeito humano. Medo de ficar
falada eu sempre tive. Além do mais, homem casado! Mas
não reclamo não. Tenho as meninas do Tozinho, faltam só
me colocar no andor. Até de avião já me fizeram andar.
Igual filho. A mãe largou elas com o pai, pequeninhas, foi
embora com cantor de ópera muito esquisito que apareceu
por aqui. Homem mais velho, dentes estragados... Duvido
que ela gostasse dele – fez foi usar a situação para fugir.
Gosto de falar nisso não, remoer tristezas me faz mal. Nestor
ficou um caco, deu de beber. Praticamente criei minhas
sobrinhas. E nem pude trazer elas p’rá morar comigo. Tentar,
eu tentei: trabalhava fora o dia inteiro, trazia serviço p’rá
casa e pai já estava dando sinais da doença... Mano só
resmungou: “– Lugar delas é aqui, porque a puta foi embora
meu lar não acabou”, engrossando a voz. Isso, bêbado.
São, conversava era com ninguém. Sorte era ser ótimo
contador, ia ao escritório quando bem entendia, fazia
serviço dele, ainda corrigia o dos outros. Sô Jarbas nunca
falou em mandar ele embora. Eu andava de roda, ia lá
duas vezes por dia, na hora do almoço e de noitinha, ver
se estava tudo em ordem, vigiar empregada, ensinar dever
de casa, limpar orelhas, essas coisas de mãe. Mãelina, é
como me chamam, agarradas comigo até hoje.
Com o tempo as coisas foram se encaixando –
estrumei o mano para fazer concurso do Banco do Brasil,
empregão naquela época. Acabou me escutando, agarrou
no estudo, passou de primeira. Foi mandado para longe,
mas ganhando bem, podia pagar mais de uma empregada
e professora particular. Descansei... Nunca mais bebeu nem
quis casar. Candidata não faltou, eu cá sei quanta moça
bonita, de família boa, deu de cima dele. As meninas e eu
é que saíamos lucrando, tanto presentinho e agrado...
Eu, depois do fracasso com o Gil, da tentativa do
doutor e mais uns que nem compensa falar, também
descrentei desse negócio de namoro. Outro dia veio a
Adelina minha amiga falar em viúvo amigo dela, de olho
em mim, dizendo que sou muito enxuta p’ros meus
cinqüenta anos. Imagina, já fiz sessenta! Concordo: pareço
mais nova por causa da pele – parece pele de índio. Pai
contava caso de bisavó dele, pegada a laço, mas muita
gente conta o mesmo caso, acabo duvidando. Agora, minha
pele e a das sobrinhas é mesmo diferente: lisinha, meio
suada, resistente, não resseca nem no frio de julho. Passo
mal e mal um sebo de boi nos calcanhares, p’rá não gretar,
e só. Já o mano é mais brancoso, puxou a família da mãe.
Quem vê pensa que é o mais velho, na verdade é o caçula.
Fiquei foi rindo do viúvo, quando Adelina deu o recado.
Bom saber que a gente não está jogada fora, mas sou
arisca. Já pensou dividir lençol com estranho nessa idade?
Quero lá homem mandando na minha casa, vigiando,
pondo ordem, reclamando? Sorte de casar nova não tive,
passei aperto demais criando as meninas, olhando o pai,
trabalhando. Agora quero é meu sossego!
Tozinho mesmo, às vezes acho nele vontade de morar
comigo, faço de desentendida Morou fora uns tempos, por
causa do banco. Uma vez, vindo de férias, reuniu as filhas
e eu, para contar da Marluce: Contou resumido, fugindo
de emoção – ela soube dele em Bocaiúva, onde ficou
muitos anos, foi procurá-lo. Conversaram, fizeram as pazes,
ele perdoou mas rejeitou proposta de volta. Ela mandou
presentes, jóias lindas para as meninas – para mim esse
colar de prata com a medalha milagrosa, coloquei naquele
dia e nunca mais tirei. Hoje manda correspondência de
cidadezinha da Itália, cartas engraçadas – conseguiu
cidadania italiana, por causa do avô, dá aulas de canto,
viaja, viaja. Passarinho, assim vejo minha cunhada,
passarinho que nunca aceitou gaiola... O mano também
acabou reconhecendo, nunca falou em separar oficialmente,
nem depois da lei do divórcio. Mas ele vive bem, depois
de Bocaiúva trabalhou aqui mesmo até aposentar. Mora
sozinho em sítio pertinho da cidade, dá até para ir a pé.
Caminhei muito por aqueles lados. Mudei de rumo depois
de topar conhecida senhora saindo da casa dele pela porta
dos fundos, retomando, tranqüilamente, a caminhada. Toda
noite capricho na sopa, ele vem jantar comigo, conversamos,
assistimos um pouco de TV – um dia, zapeando, parei em
novela mexicana: lá estava ela, plastificada, recauchutada,
fazendo papel de avó. Ele me perguntou: “– Essa daí é
quem estou pensando?” “– É, falei, Libertad Lamarque”.
Me olhou, olhos rasos d’água: “– Haja Pelmex p’rá nós,
hein, mana?” Fiquei quieta, sem saber se chorava ou ria...
Aí pelas dez horas ele volta p’ro sítio, parecendo adolescente
na moto nova, sonho tão antigo. As filhas, crescidas: Norma
mora aqui com marido e filhos, professora na Faculdade
de Letras; Margot, em Belorizonte, terminando curso de
medicina; Celeste Aída, a mais parecida com a mãe, faz
curso superior de música em São Paulo. Paixão dela é
piano, diz que vai especializar em Ernesto Nazaré. Gosta
mesmo é de viajar e namorar. Já visitou a mãe e cada vez
que vem de férias traz namorado diferente...
De repente, acordei: olha eu escrevendo! e com o
maior prazer. Mãe, se visse, havia de falar: “Agora sim,
estamos arranjados, a outra deu de escrever depois de
velha!” Já Yolanda, minha amiguinha de leituras, ia gostar.
Uma vez falou: “– Ô Lina, porque você não começa a
escrever?” Olhei desconfiada: “Tá debochando de mim,
Yôla?” “– Que deboche que nada, menina, você tem o
dom de contar histórias. Lembra do professor falar? “A
Yolanda escreve empolado, é bonito mas soa meio artificial.
A Esterlina escreve como quem fala, natural, sem dar
trabalho ao leitor...” Eu mesma fico babando com suas
histórias, vôo longe...”
Yolanda, viajamos juntas tantas vezes nos livros
prediletos: Charles Dickens e Érico Veríssimo. Sempre ela
conseguia novidades: o tio mandava de São Paulo, a prima
rica emprestava. Mais de uma vez, em plena aula, me passou
bilhetinho: “Arranjei um novo do Érico”. Era ler e comentar,
horas de prazer e sonhos. Me apaixonei pelo Vasco de
“Um lugar ao sol”, ela se identificou com a Olívia, de “Olhai
os lírios do campo”. Por muito tempo só assinava Olívia.
Pois aí está, Yolanda/Olívia, depois de quarenta anos sigo
seu conselho. P’rá desabafar, descarregar o peso: saudades
de você, do pai, da mãe, de madrinha Balbina, única pessoa
a me mimar nessa vida. Saudades da Marluce: “– Levanta
essa bunta da cadeira, Estelita, vamo dá umas folta”. Aquele
sotaque duro que copiou do avô, por charme... E guiava o
carro, feito doida, cantando alto, em alemão, italiano,
francês! Dor enorme de saber que Gilvan, meu Gil, morreu
em grande sofrimento e não fui capaz de ir vê-lo, por
covardia, traindo “Nuestro Juramento”: “si yo muero primero,
és tu promesa, sobre de mi cadaver dejar caer, todo el
llanto que brote de tu tristeza, y que todos se enteren de tu
querer...” Foi no ensaio para o baile de formatura: alguém
colocou na vitrola o Trio Los Panchos cantando essa música,
ele me olhou profundamente, como querendo confirmar o
pacto. Pegou minha mão e começamos a dançar, pela
primeira vez. Foi o momento mais bonito de minha vida.
Ele dançava bem, flutuamos pelo salão. Pois nem o enterro
acompanhei, Gil, por vergonha, respeito humano. Mostrei
p’rá ninguém meu grande amor por você. Pedi foi ao seu
Jorge, D. Yvone e a Adelina para irem, não queria ver ele
enterrado sozinho. Coragem tive só de pedir consentimento
ao Nestor para ele ficar no túmulo da família, senão ia
descansar em terreno emprestado da prefeitura. Mágoa
funda ao abrir envelope mandado por dona Valmira:
aliança com meu nome gravado, mecha de cabelo e um
retrato três por quatro, de uniforme, tirado pelo Zé do
Foto, para a caderneta de meu último ano de escola.
Semana que vem, vou lá, mando dar limpeza no
túmulo e gravar, embaixo do nome do pai, com letras
comuns, bem simples – Gilvan – como ele pediu seu
Gasparino para fazer na nossa aliança.
Novidade é que, junto com a dor, veio profundo
alívio. Acabou, essa história acabou. Continuei a fiel noiva
dele esse tempo todo, só agora entendi. Foram embora
com ele a mágoa, o medo, as esperanças. Meu doce Gil da
fala macia, maior vítima dessa história...
Pai, já doente, tocou primeira e última vez no assunto:
“– Filha, o que você pensa, agora, do moço, do seu paude-
arara?” Falei verdade: “– Perdoei há muito tempo, pai.
Tenho rezado por ele, penso se não fizeram ele de bobo.”
– “Pois eu não penso, filha, tenho certeza. Você faz idéia
das conversas de alfaiataria? Misael, então, sabe da vida de
todo mundo, dá até enjôo. Pelo que escutei, aquele tirano
farejou rapaz bonito, educado, culto, sem família, sem
dinheiro... Ninguém que punisse por ele. Forjou tudo para
limpar o nome da moça, já falada, namorando até homem
casado. Destruiu duas vidas sem grande resultado. Diz que
ela não respeita nada, é doença. Ele só tinha a gente, nós
ficamos lambendo nossa ferida e nem pensamos nisso.
Comadre Balbina foi a única a tentar defesa: – “Compadre,
precisava alguém procurar esse moço, conversar, saber a
versão dele dessa história. Se ele for moço direito como
parece, deve estar sofrendo demais!” Olhei meio irônico,
ela calou. Um gambá cheira o outro, pensei. “Maldade
pura, filha, ninguém tem direito de ficar julgando... Quando
enxerguei a verdade tive remorso, mas, sem dinheiro nem
prestígio político, a gente ia fazer era nada. Peço a você
para por pedra em cima. Esquece, perdoa, reza por eles
todos, seu coração é grande...”
Grande até demais, parece: me peguei toda faceira
hoje de manhã, caprichando no penteado para ir à padaria
buscar pão... O tal viúvo passa lá todo dia cedinho, toma
café, compra pão e quitandas, antes de ir p’rá fazenda.
Quem sabe?