O tempo costurado, Carlos Perktold
Sabíamos, contado em segredo nos quartos da casa, o
rápido e doloroso drama que havia despedaçado a nossa
mãe. Depois de sete anos de felicidade com meu pai e
com quatro filhos, ele faleceu de misteriosa doença, que
destruiu também toda a economia que guardara como
advogado. Ela foi deixada jovem no mundo com uma
escadinha de quatro degraus para educar e nos transformar
em homens, e com uma renda insuficiente para o que
tínhamos tido até então. Eu era o caçula e tinha oito meses
de idade quando tudo aconteceu. Meu irmão mais velho
tinha seis anos e a única coisa de que ele se lembra dessa
ocasião é de grande movimentação dentro de casa durante
dois ou três dias. Depois foi só silêncio. Inclusive dentro
dele. Tudo o que sabíamos daqueles seis meses de doença
nos foi contado pelo tio mais velho da família, que nos
ajudou financeira e socialmente durante anos até que
conseguíssemos superar a ausência de papai e de tudo o
que ele nos oferecia. De nós quatro, apenas João, o mais
velho, tinha lembrança dele, em especial quando víamos
as fotografias da família acumuladas durante os sete anos.
Muitas vezes o surpreendi de olhos fechados e com as
fotos na mão. Como você pode ver as fotos de olhos fechados,
João, perguntava. Ele respondia que via com o coração.
Pequeno, não entendia sua resposta. Jorge, Lúcia e eu nunca
sentimos a ausência paterna, talvez porque não se perde o
que não sentíramos ter tido e aprendi, ao longo da vida, a
colocar meu tio no lugar de pai.
Morávamos num apartamento de classe média
suficiente para os então seis integrantes da família. Dois
dias depois do sepultamento, minha mãe começou a chorar
e, a partir daí e durante oito meses, ela foi tratada por
psiquiatra que chamava sua tristeza de depressão reativa.
O médico acrescentava prognóstico misterioso afirmando
que seu estado poderia durar dois meses, dois anos ou
ficar para sempre, ninguém sabia. Certos dias, ela acordava
mais cedo para sobrar-lhe mais tempo para chorar. Em
outros, só dormia depois de exaurida de cansaço.
Exatamente oito meses depois do início de sua tristeza,
numa tarde de muito calor e numa atitude surpreendente
para a enfermeira, ela levantou-se, tomou banho, trocou
de roupas, penteou-se e surgiu na sala perguntando pelos
filhos. À noite comentou com meu tio que não choraria
mais. E nunca mais chorou. No dia seguinte, esvaziou o
armário de meu pai, doando tudo. Muitas camisas, ternos,
uma montanha de gravatas, sapatos, tudo foi posto para
fora. Ela teve o cuidado de cortar as cuecas e pijamas
usados e os colocou no lixo. Descobriu vários cortes de
tecidos que, esquecidos, não haviam sido transformados
em camisas. Ao final estava exausta. Naquela noite dormiu
sem remédio. Foi a primeira depois de quase um ano e
meio de insônia. A partir daí tratou de recuperar o que
emagrecera nos meses de pesadelo.
Naquele dia, quando limpou o armário de meu pai,
ao ver os cortes de tecidos separados, únicas peças não
doadas, nasceu-lhe a idéia de se tornar costureira. A decisão
veio-lhe com a crença de que, se no meio de tanta coisa
para doar, ela havia separado os tecidos, alguém tentava
lhe dar um recado. Eram crenças místicas dela e da família,
da mesma linhagem que a levou a picar as roupas íntimas
do marido. Duas semanas depois procurou curso de corte
e costura, oferecido com freqüência nas paróquias locais
nos anos 1950. De início sentiu-se humilhada pela busca
de uma atividade profissional que nunca lhe ocorrera,
expondo a sua dupla condição de viúva e de mãe com
quatro filhos pequenos, no mesmo local onde tinha sido
dama de caridade, denominação dada a quem colaborava
com assiduidade e certa generosidade na igreja. Mas a
depressão a havia transformado.
Naquela época as costureiras trabalhavam em casa,
oferecendo um serviço que as grandes fábricas e as
confecções de hoje não haviam liquidado, juntamente com
a de alfaiate. O mundo não era tão competitivo nem tão
globalizado e havia clientes com tempo para aguardar uma
semana ou duas por uma roupa feita sob medida.
A sua primeira decisão foi utilizar os cortes de tecidos
recebidos de herança para aprender a nova atividade. Por
inabilidade e falta de conhecimento, perdeu quatro. Mas
em seis meses ela se transformou numa das mais dedicadas
alunas daquele curso. Daquele amontoado de pano, ela
havia confeccionado oito camisas em boas condições, todas
vendidas na própria família. Minha mãe havia descoberto
que poderia defender a si mesma e aos seus filhos, educálos
e servir de exemplo com o seu trabalho. Lembro-me de
que, anos depois, de volta do colégio, eu ia visitá-la na
igreja e via a antiga aluna ocupando agora o lugar de
professora e, pela sua colaboração naquele curso, havia
recuperado o título de dama de caridade.
Se houve mudança na nossa vida depois do
falecimento de meu pai eu nunca soube. Quando me
descobri pensando, a nova família já estava organizada,
com a minha mãe ocupando os dois lugares, materno e
paterno, acrescida de meus tios em volta, preocupados
conosco e dando opiniões sobre nossa educação. Vê-la
naquele lugar de costureira foi uma rotina a que eu me
havia habituado. Ouvia o som da máquina na qual ela
trabalhava em casa e o tempo me ensinou que ele era
uma sinfonia maternal, cujas notas jamais conseguirei
colocar nas pautas. João fazia seu para-casa com aquela
música nos ouvidos e ocasionalmente, como se fosse uma
necessária pausa musical, pedia a mãe para lhe explicar
algo que não havia entendido. Ela, paciente, largava o
trabalho e batalhava com ele. Batalhava é o termo mais
apropriado porque, de todos nós, João foi o que mais
sentiu a ausência de nosso pai, talvez por causa da sua
idade quando do falecimento dele. Ausência que se refletia
no seu aprendizado, na sua revolta frente à vida quando
entendeu que ele não voltaria e que, sem ele, muita coisa
mudara.
Mas o primogênito da casa havia herdado o
temperamento da mãe e, tal como ela fizera com a depressão
reativa, um dia ele começou a compreender os textos, o
raciocínio matemático e se saiu bem como aluno e, mais
tarde, bom profissional. Contando assim, tão rápido, meses
e anos de nossas vidas, o leitor não saberá o que foi aquele
período e o tanto que uma casa fica desorganizada com
um falecimento anacrônico. Anacrônico sim. Meu pai
desaparecera aos 32 anos de idade. A ausência dele
equivaleu ao rompimento da viga mestra do prédio sólido
que éramos, cujo peso a outra viga precisa, de repente,
suportar. Certas pessoas, perplexas diante do anacronismo
batendo-lhe na cara despreparada, deixam desmontar o
prédio inteiro; outros resistem sem que consigamos
compreender como foi possível. Minha mãe foi uma viga
ímpar, suportando o peso da juventude perdida numa
viuvez sem fim – nunca mais se casou –, arcando com
quatro filhos e pouco dinheiro para nos manter.
Parando hoje para contar o que foi nossa infância,
juventude e parte de nossa vida adulta, sinto que temos
uma biografia semelhante à de outras famílias. Nosso pai
não foi o único a desaparecer em plena juventude,
deixando viúva deprimida. Havia casos mais tristes que o
nosso. Antônio Celso, um vizinho que nunca esqueci, não
faleceu, mas foi uma equivalência à morte quando ele um
dia saiu de casa pro trabalho e nunca mais voltou. Eu
sentia pelos seus filhos, todos meus amigos de infância,
uma empatia solidária que ajudou a consolidar amizade a
permanecer até hoje.
Minha mãe, depois da depressão, não lamuriou a
vida que passou a ter com a viuvez. Levantava cedo, punha
todos os filhos pra fora da cama, mesmo nos fins de semana,
e nos transformou em guerreiros da vida. Em certas ocasiões,
raras, mas que nunca esqueci, ela me olhava com muita
ternura e dizia: meu filho, hoje levantei com o coração
roxinho. Apenas essa frase, sem acrescentar nada. Apesar
de garoto, nós dois fazíamos um eloqüente silêncio que,
no meu tempo vivido de menino, parecia durar a tarde
inteira. Lamento não a ter abraçado naqueles dias; teria
sido um equivalente das coisas que aprendi adulto. Nunca
a vi chorando, mesmo nos dias mais difíceis. Acho que à
noite, quando estávamos todos dormindo, ela não resistia
e, na solidão dos cobertores, se abria em prantos. Mas isso
é o que eu imagino, nunca acordei com qualquer barulho
que comprovasse algo vindo do quarto. A tristeza podia
estar escondida num canto de seu coração de eterna viúva.
Em nossa cidade, foi a primeira a inverter o que as
outras costureiras faziam. Passou a ir à casa dos fregueses
e a cobrar pelo dia e não pelas peças. Em casa havia
sempre duas agendas preenchidas: uma ficava com ela e
outra depositada sobre o móvel da sala, com vários meses
à frente, tão grande era a procura pelos seus trabalhos, de
tal forma que sabíamos, com meses de antecedência, que
tal dia do mês ela estaria na casa de Fulana. Se precisássemos
de algo, bastaria procurá-la naquele endereço.
Meus tios nunca comentaram sua decisão de aprender
o ofício de costureira, mas sabíamos que não foi uma
decisão bem aceita na família. Teriam preferido que ela
cursasse Direito e herdasse os clientes de meu pai. Inútil
tentar explicar-lhes que os clientes já estavam perdidos desde
o início da doença dele. Quando adoeceu, ele ficou seis
meses sem ir ao escritório, sem estagiário até mesmo para
atender os telefonemas. Se ela esperasse pelo vestibular,
os anos de curso, conhecer tudo aquilo em que meu pai
tinha sido craque, seria impossível cuidar dos filhos. Nossa
dificuldade era imediata e a solução deveria ser da mesma
forma. Somente respeitaram sua atividade quando viram o
quanto ela era valorizada na paróquia e o tanto que era
querida pela alunas.
Tudo isto que tento resgatar aqui, contando a história
de uma heroína muito particular, passou a ter mais interesse
quando o tempo foi cuidando de nos formar e a família se
levantou social e financeiramente depois que meus irmãos
e eu terminamos a faculdade e começamos a trabalhar
com afinco. Ganhamos algum dinheiro, nada exorbitante
porque herdamos a honestidade dos pais e, com ela, é
difícil enriquecer. Queríamos impedir nossa mãe de
continuar trabalhando quase treze horas por dia em casa
alheia e vê-la juntar economias que foram suficientes para
nos formar, mas que lhe havia devorado toda a beleza e
juventude. Nos primeiros anos não podíamos modificar a
situação por pura falta de opção e quando foi possível,
nossa mãe se recusou alegando que se sentia feliz na sua
atividade. Nunca reclamou das horas de trabalho, nunca
se queixou de doença ou de cansaço. Quando
comentávamos sobre isso, dizia que ninguém se sente
cansado quando faz o que gosta. Depois de adulto, houve
época em que julguei seus dias de costureira e as longas
horas de trabalho como uma defesa maníaca de uma
depressão que surgiria a qualquer momento. Eu estava
errado. Ela era feliz no que fazia, com a vantagem de
ganhar o suficiente para cuidar dos filhos.
Mas a partir de 1970 seu trabalho era desnecessário
na família. Fizemos questão de mostrar-lhe. Mostramos ainda
que até as lojas de tecidos já não tinham o movimento
daqueles anos iniciais e que aquelas de roupas feitas
estavam matando profissões como a sua, a de alfaiate,
assim como o tempo havia liquidado com as de calceteiro,
picheleiro, de amolador ou de telegrafista. Era uma
imposição da globalização, das grandes corporações, do
desinteresse pela elegância e o aparecimento da era das
aparências, época na qual uma calça de marca famosa ou
uma camisa com logotipo são mais importantes que um
trabalho artesanal feito sob medida. Ela, com dificuldade,
aceitou e foi diminuindo seus trabalhos. Começou
trabalhando só à tarde. Pela manhã cuidava do jardim, da
casa, costurava para os meus tios que, ainda e sempre
solteiros, não sabiam pregar um botão em camisa e a viam
como a salvação da elegância deles. Depois ela inverteu o
horário de trabalho e visitava suas clientes pela manhã.
Estas foram diminuindo consideravelmente. Nunca
soubemos o que era feito do seu dinheiro e nem ela dava
explicações. Há muito não era arrimo de família. Até que
chegou o dia no qual a única agenda da casa ficou vazia.
Ninguém mais a procurava.
O tempo passou rápido, não tão depressa quanto o
necessário para ler esta frase, e oito dias depois de seu
falecimento reunimo-nos para esvaziar o mesmo armário
que fora de meu pai. Fizemos então a descoberta que
surpreendeu a todos: com o seu dinheiro ela havia
comprado uma quantidade enorme de cortes de tecidos,
todos embrulhados para presente com o nome de cada
um de seus antigos clientes, alguns já falecidos. Compreendi
que ela queria convencer seus potenciais presenteados a
lhe entregar o tecido para ela voltar a exercer a atividade
na qual havia sido tão feliz.
<< Página inicial