sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

O realejo, José Bento Teixeira de Salles

Ninguém conhecia a história daquele velhinho do realejo.
Sabia-se apenas, pelo sotaque carregado, que ele viera da
Itália. Nada mais. Todas as tardes, lá pelas cinco horas, ele
passava pelo bairro, tocando naquela engenhoca uma
música monocórdia, profundamente triste.
Menino ainda, eu me encantei com aquele espetáculo
incomum. Depois, comecei a acompanhar o velhinho e
seu realejo pelas ruas íngremes do bairro. Achava pitoresco
quando uma doméstica sofrida, ou uma solteirona frustrada,
pagava dez tostões para o periquitinho tirar com o bico um
papelucho dobrado e entregá-lo à freguesa balzaquiana.
A empregada, ansiosa, desdobrava o papelzinho e
lia: “Não desanime na vida. Um dia, você será feliz. Talvez,
um bilhete premiado resolverá todos os seus problemas.
Ou então uma herança de um parente desconhecido. Quem
sabe?”
Sôfrega, a solteirona também lia seu papelucho:
“Quem espera sempre alcança. Vejo um moço bonito, alto,
louro, bem elegante, passando pelo seu destino. Ele a fará
feliz por toda a sua vida”.
O bom velhinho se alegrava assim, distribuindo a
ilusão e o sonho para aquelas infelizes mal-amadas.
Não sei, não, mas eu achava que aquele homem
tinha um olhar meio triste, como se estivesse fitando um
passado distante. Mas, ele sorria discretamente quando o
papel dobrado do periquito anunciava alegria e sorte.
Com o tempo, acompanhando o homem com
perguntas ingênuas e desnecessárias, tornei-me seu amigo
e confidente.
– Mas, por que o senhor veio para o Brasil?
Com aquele mesmo olhar tristonho, ele me contou a
sua história. Nascera realmente na Itália, de família modesta
e humilde, cujo chefe era encarregado de uma fazenda. A
filha do proprietário, moça bonita e vistosa, tinha uma linda
coleção de caixinhas de música, que ela adorava. Era raro
o dia em que não se punha a ouvir, uma a uma, a música
repetida daquelas preciosas caixinhas.
– Pouco a pouco, – disse o italiano – acabamos por
nos apaixonar. Era lindo vê-la à tarde, dando corda nas
caixinhas e bailando com leveza para acompanhar aquelas
músicas que ainda hoje retenho na lembrança. De simples
namoro, passamos a uma paixão profunda e resolvemos
casar.
Naquele tempo porém, no tempo do realejo – disse –
os costumes na minha terra eram rígidos e todos obedeciam
cegamente aos pais. O fazendeiro se opôs firmemente ao
casamento, proibiu o noivado e resolveu levar a filha em
viagem ao exterior, na esperança de que ela se esquecesse
daquele amor juvenil.
No regresso, como ela insistisse em sua paixão, o pai
resolveu interná-la num convento religioso.
E acrescentou:
– Antes que isso acontecesse, ela fugiu de casa,
desesperada. No dia seguinte o corpo foi encontrado
boiando na grande represa que havia em frente da sede
da fazenda.
– Eu era jovem e sonhador – continuou o homem a
sua narrativa. Desiludido, vim para o Brasil e aqui estou
com este realejo, que para mim é um pedaço de minha
própria vida.
Esta história, meu filho, pode parecer banal e vulgar,
mas é verdadeira. O realejo a tocar é o único alívio para as
minhas dores, pois sua música me faz lembrar de minha
amada e da terra distante onde nasci.
– Tenho a impressão de que se este realejo deixar de
tocar, eu morrerei com ele – concluiu.
Os dias passavam e com o correr do tempo, foi se
transformando a paisagem do bairro. Cortinas de cimento
e de ferro dos edifícios encobriam as cores vespertinas de
Belo Horizonte. O sangue negro do asfalto regava as ruas
de violência e ódio. As crianças já não brincavam com
alegria e amizade. O doutor engravatado já não saía a pé
para tomar o bonde na esquina, nem os padeiros e leiteiros
iam de porta em porta entregando parte da subsistência do
dia.
Das janelas dos altos edifícios retumbava o estridor
de um bate-estaca abafando o som melódico do realejo.
Os tempos eram outros. Um dia, não mais do que de
repente, o bom velhinho deixou de percorrer o bairro
tocando a nostálgica música de sua engenhoca.
Ele morrera com ela, bem sabia eu.