Boca Zantar, José Mauro da Costa
“Veja se reconhece aquele velho”. – O companheiro
que se despedia estendeu o indicador.
No meio da praça o homem, com um rapazinho lhe
dando a mão, procurava banco no jardim. Um desses
aposentados que se encontram nas filas do Instituto.
“Não faço a menor idéia, quem é?”
“O cabo Honório, da PM, telegrafista dos Correios”.
Não acredito. Firmei a vista, medindo sua altura,
observando o andar arrastado e a blusa de frio numa tarde
de janeiro. Olhando bem, pela fisionomia me pareceu
conhecido. É, pode ser.
Curioso, atravessei a rua, sentei-me perto do coreto,
com a lembrança de um tempo já muito passado e daquele
sujeito que fez parte de minha juventude.
Acho que foi um poeta quem falou da saudade dos
seus oitos anos e Ataulfo Alves era feliz e não sabia. De
minha parte, entretanto, busquei a recordação tão-somente
para chegar aos dias então presentes, quando começou a
história.
O quartel, onde hoje está o colégio, ocupava um
quarteirão. Havia no seu interior quadras de vôlei e de
basquete, o campo de futebol. Perto do chafariz, argolas,
barras, cavaletes e outros aparelhos de ginástica. Mais
afastada, uma quadra de tênis.
Nos fins-de-semana a garotada entrava com boletim
escolar e material esportivo nas mãos, éramos entregues
ao instrutor. Ele repetia regras, montava esquemas
defensivos e ofensivos, entremeados por casos graciosos e
picantes.
Tornamo-nos poliglotas, aprendendo as línguas do F,
do R e do P (popó-lipi-glopó-taspás) e a conversar com as
sílabas de trás-pra-frente, o que fazíamos para
reconhecimento do grupo. A palavra você, por exemplo,
se pronunciava cevô. Hoje em dia, essas línguas, quase
beirando o idiomatismo, estão em extinção, sei lá, como o
Latim e o grupo lingüístico ugro-finês, falado por esquimós
lá pelas bandas da Lapônia.
Ao vencer campeonato na piscina do Minas Tênis
Clube, aproximou-se com igualdade e a maior falta de
cerimônia, exibindo o troféu e concedendo-se o apelido:
“A partir de hoje a tropa vai me chamar de cabo
Tarzan, fiz por merecer”. Olhou para trás, para um lado,
para outro, protegeu a boca com as mãos em concha e
disse em voz baixa: “para vocês eu sou o Boca-Zantar” e
terminou o discurso no vocabulário de-trás-pra-frentista:
“Uvo garjo um potem com daca meti”.
Identificava-se, dessa maneira, com um personagem
de filmes da época, representado por Johnny Weissmuller,
campeão mundial de natação.
Encontramo-nos posteriormente em 1969, depois disso
não nos vimos mais.
Bem, terminado esse intróito para esclarecimento da
história, como disse, ajeitei o nó da gravata e me
reapresentei. Era eu um certo moreninho, que chamavam
de Tição, doido para entrar no time mas nem quedes tinha
para jogar voleibol.
Ameaçou levantar-se e nos cumprimentamos,
gastamos um tempinho nos admirando. Vestia uma roupa
de meio-luto, os escassos cabelos acentuavam o rosto
amarelecido. Seus óculos eram daqueles com lentes grossas,
fundo de garrafa, que aumentam o tamanho dos olhos.
Mas nada disso tinha importância, levei o assunto para os
antigamente, quando éramos bem mais jovens. Depois de
uma pausa, limpou os óculos e pediu minhas notícias.
Caminhamos em direção ao antigo cinema, quase
atrapalhando o jogo de bola de uns moleques. O garoto
que o acompanhava ficou por ali dando chutes.
Como sou mais de ouvir do que de falar – hábito
que conservo e muito eficaz em determinadas missões –
concedeu-me leve sorriso ao lhe dizer que me sentia um
matusalém, também me retirara da ativa e usava terno
porque arrumei na Prefeitura o cargo de fiscal da natureza.
“Nunca fui saudosista”, me disse com olhar a esmo,
“mas a vida que se leva traz mesmo saudade daquele tempo.
Deus está sumido desta terra, você não acha?”
Não quis retrucar “quem sabe Deus podia fazer uma
limpa geral, mesmo” para, convenhamos, não renovar
polêmica e porque logo-logo em seguida destravou pedaços
de sua vida, repetindo alguns fatos de que eu já sabia.
Enfastiado com o serviço militar, fez concurso no
antigo DASP e foi trabalhar nos Correios, como telegrafista.
Transferiu-se para o interior e ali ficou, transmitindo e
recebendo pontinhos e tracinhos que só tendo Q.I. de
Einstein para entender.
Por suas mãos, pelos telegramas, passavam todos os
sentimentos humanos, desde parabéns aos pêsames, desde
os pedidos de emprego aos políticos e suas respostas
políticas, às comunicações criptografadas do único banco
local: um dia após a expedição do telegrama, chegavam à
cidade dois homens com duas malas desgastadas, pesadas,
chamando à atenção. Eram portadores de numerário, reforço
de caixa para o Banco do Brasil. O povo já se acostumara
com essa rotina. Apesar disso, desse transporte rotineiro e
inseguro, nunca ocorreu qualquer assalto, roubo ou
seqüestro. Dá para acreditar?
Em 1962 presenciou a inauguração do novo prédio
dos Correios e Telégrafos em Minas Novas, cidadezinha
do norte do Estado. Quem lá estava, cortando a fita, era o
Senador da República Juscelino Kubitscheck. Ex-telegrafista
e maneiro como ele só, acionou o aparelho Morse e deixou
registrada sua saudação aos antigos colegas. Aproveitando
o bom ouvinte, citou-me uma curiosidade. O “V” da vitória,
feito com os dedos fura-bolo e maior de todos, se baseou
no código telegráfico conjugado com o forte tema inicial
da 5ª Sinfonia de Beethoven. E solfejou, cheio de
vivacidade: “tchan-tchan-tchan-tchaaannn!” Caprichando na
exclamação e esclarecimento: “três pontos e um traço, a
letra vê”.
Eu não sou ligado nessas perfumarias de arte, mas
ouvira dizer que a tal sinfonia era pano de fundo nos
discursos de Winston Churchill, ao término da 2ª Guerra
Mundial. Mesmo assim, fiquei surpreso com essa, digamos,
descoberta, essa vinculação entre telegrafia e música. De
conhecimento público, o Sr. Waldir Silva, também do ramo,
gravou um disco emitindo sons telegráficos, sei lá se ele
também tem alguma coisa a ver, algum elemento oculto,
mensagem cifrada aos iniciados. Merece investigação, esse
mistério.
“A conversa está muito comprida e a noite está
chegando” – ele quis dar ponto final. Sem parecer
interesseiro, mantive a disponibilidade, fazendo-o crer na
minha alegria em revê-lo e ouvi-lo.
Um casal de namorados, ao beijo e abraço, terminara
seus segredos e desocupara um banco com o encosto
quebrado.
Sentamo-nos, ele movimentou a cabeça, disse-me
sentir uma espécie de torcicolo na nuca, o braço parecia
dormente. Sua respiração encurtou, levou as mãos ao peito.
Passados alguns instantes e com a cor nas faces de novo,
me tranqüilizou, sua doença era velhice, ainda não
descobriram cura para ela.
Pois bem, naquelas alturas dos acontecimentos, em
1964, o País estava fervendo, mas, felizmente, afastou-se a
sombra do comunismo. Já morando na Capital, meteu a
cara nos livros de Radioeletricidade, Legislação, Ética e
pronto. Em seis meses estava à noite corujando e esbanjando
o Código Q na faixa dos 40 e 80 metros, PY-4 diplomado,
com direito ao indicativo de três letras.
Angariou donativos e remédios para a Cruz Vermelha
do Uruguai e do Chile, mandou recados a valadarenses
nos Estados Unidos, localizou parentes de certa família
libanesa. Mantinha e intermediava contatos com e entre
amigos, conhecidos e desconhecidos. Estavam sempre
presentes seu por ele chamado idealismo e o espírito
jocoso. Em qualquer conversa de bar em que ouvisse seu
nome replicava: “na escuta”, ou QRZ, quem está chamando?
Quando não queria tomar partido em discussões políticas
vinha com seu “estou em QRT”, isto é, suspensão dos
trabalhos, ele saía do ar. No salão de sinuca cantava a
jogada: “bola pentafive na caçapa do meio”.
Foi sua época cor-de-rosa. Até que.
Em 1969, por denúncia de um informante, foi acusado
de mandar mensagens secretas a terroristas contra o governo
militar. Agentes federais invadiram sua casa, recolheram
tudo aquilo que entendiam como provas do ato ilegal,
inclusive o uso do alfabeto fonético como código
subversivo. Para esse gente, o “A” não é A, é Alfa; o “B”
eles chamam de Bravo, o “C” é Charlie, até ao “Z”, que
falam Zulu. É ou não é de se estranhar?
“Desde Adão e Eva pensar diferente é perigoso”. E senti
uma espetada: “Você sabe do que estou falando, não é?”
Considerado inimigo do regime e indiciado em
Inquérito Policial Militar, não suportou os interrogatórios e
foi internado numa clínica para tratamento mental. Ao
retornar ao cargo nos Correios, encontrou sorrisinhos,
bilhetes anônimos com a foice e o martelo, apoio de
sindicalistas cassados.
Por volta de 1976, um bando de telegrafistas rebeldes,
ele no meio, fez a chamada operação tartaruga. Moral da
história e para encurtar a conversa: o governo engrossou e
nessa ocasião foi aposentado por invalidez.
“Mas o senhor nunca desconfiou de alguém? Parece
que o inquérito não deu em nada”. E até hoje estou
embaraçado com sua resposta:
“Há pessoas, mesmo aquelas perto de nós, que se
aproveitam do momento para pegar uns trinta dinheiros.
Não, não quis mexer com isso, seria penar duas vezes.
Estou quase cego e pensando se requeiro indenização pela
Lei da Anistia, mas, por enquanto, vou lutando em outra
batalha”.
Tirou a blusa de lã, mostrando – detalhe do qual
nunca me esqueci – uns bracinhos magros, muxibentos,
cheios de cicatrizes e as veiazinhas fininhas, fininhas.
Medalhas pela resistência.
Os jornais publicaram a notícia em primeira página,
as redes de televisão mostraram o desmoronamento da
Vila Barraginha, o País inteiro tomou conhecimento da
calamidade. Sentou-se diante do transmissor, entrando em
QSO com seus colegas, pedindo e recebendo auxílio e
solidariedade. Homens, mulheres e crianças de todas as
idades sofreram o soterramento e nele morreram. Até hoje
continuam discussões e alegações jurídicas para definir
quem foi e quem não foi culpado, num cipoal de recursos
e mais recursos, cartas-precatórias e adiamentos. O assunto
foi perdendo o impacto, saindo aos poucos das páginas
dos jornais e dos noticiários das televisões. E, aqui entre
nós, quer saber? Ninguém se importa mesmo com esses
Zé-povinhos, essa arraia-miúda tem pouca serventia.
Sua mulher e a filha morreram naquela noite, os
corpos só foram encontrados muitos dias depois.
Ficamos em silêncio e perdi o rumo da conversa. O
pobre coitado recebera fel duplamente amargo e não se
poderia simplesmente dizer afaste de mim esse cálice. É a
vida.
Tentei outro caminho, o motivo de sua presença ali,
já que morava no outro lado da cidade.
Sentou-se de novo, separou uma pasta de plástico,
colocou-a entre as pernas e abriu-a, descobrindo cópias de
processos e de abaixo-assinados, retratos, recortes de jornais
e de correspondências, tudo em várias xerox.
Tentara receber o seguro mútuo de vida que fizera
com a mulher, o dinheiro garantiria estudos para os netos
sobreviventes. Foram meses e meses vagueando de porta
em porta e ainda não recebeu o pecúlio porque, na certidão
de óbito, o médico do centro de triagem deu a causamortis
como desconhecida. Com muito custo, mal-e-mal
pôde dar-lhes enterro cristão.
“Talvez pensem que eu mesmo tenha matado as
infelizes”.
Enquanto isso, laudos de perícias técnicas rolam por
gabinetes, sofrem contestações, engordam inquéritos
enigmáticos e os anos vão passando.
Veio ao bairro encontrar-se, mais uma vez, com filho
de seu já falecido chefe na ECT de Diamantina, profissional
de renome. A secretária, borrocada de batom, o recebera
cheia de evasivas, entregou-lhe um envelope e, sem choro
nem vela, com um às ordens e um bom tchau lhe fechou a
porta. No bilhete lacônico, que me mostrou, o advogado
pedia desculpas: viajara às pressas para cuidar de assunto
importante, mas, em consideração ao pai, deixava endereço
de outro colega, especializado naquele tipo de demanda.
Sugeri que procurasse ajuda da Defensoria Pública e
provoquei: “o Boca-Zantar não abaixaria a crista tão
facilmente”.
Surpreendido ao ouvir seu codinome, abaixou a
cabeça, escondeu o rosto com as mãos, um minuto
pensativo. “Mas a sua voz continua a mesma”, sussurrou.
De repente, pousou a mão no assento do banco e lembrou
seus tempos de telegrafista. Tamborilou os dedos na
madeira, como se ela fosse o pica-pau e, ao notar minha
cara de desentendido, repetiu os gestos e novamente me
traduziu o Código Morse: “três pontos, três traços, três
pontos, isso é S.O.S., Save our Souls. Conferiu o relógio, eu
também, filosofou, “a vida está sempre ensinando, quem
quer aprender, aprende”. Retirou o lenço do bolso para
enxugar a emoção, levantou-se, a falar de cima para baixo:
“Tive e tenho ainda mais problemas que um livro de
matemática, você sabe. Só espero que a danada da
Esfomeada tenha um tiquinho mais de paciência comigo”.
Eu tive certeza, ele não iria durar muito tempo, não. “Boca-
Zantar, cabo Tarzan, telégrafo, telegrafista, isso não existe
mais, é tudo peça de museu”. – Era um lamento, seu adeus.
Limpou os óculos, examinou-me com calma, do
cabelo aos pés. Olhou-me nos olhos com aqueles seus
olhos enormes e então, bem, e então seu olhar e seu sorriso
de ironia disseram tudo.
Soltara o verbo primeiro para se divertir às minhas
custas e, segundo, para levar sua carga até o limite
insuportável, o fim de tudo. E eu, para falar a verdade,
perdi a confiança em minha habilidade indagativa, porque
a impressão que tivera – corpo frágil no andar arrastado,
indefeso -, foi trocada pelo espanto em que me deixou na
despedida.
Amparado pelo menino e dando-se ao luxo de não
me estender a mão, concluiu:
“Você é aquele major do IPM, não é? Ficava melhor
de farda e ray-ban. Pode acreditar, major, ou seja lá o que
for, se acham que algum dia vou desistir estão muito
enganados. O Papa-Yankee aqui está sempre em QAP”.
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