sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Alfaiate, Irlanda Silva Gino

Ele acaba de fazer o grupo escolar. Traz paz e alegria no
coração. Parece-lhe que o sol brilha com mais luminosidade
do que nos outros dias. É chegado o momento de receber
o seu diploma. Nas provas finais conseguiu o primeiro
lugar. Quando existe uma grande falta há que se
recompensar com alguma coisa. É pobre, inteligente e tem
muita força de vontade em tudo que faz. Por isso se destaca
entre os colegas.
Existe um prêmio para o primeiro colocado, os estudos
pagos até a idade adulta. Espera-o com grande ansiedade.
No entanto, o prêmio foi dado ao segundo. Conforme
os critérios e a forma de pensar dos organizadores do
concurso, pelo fato de sua origem humilde, ele não
aproveitaria o prêmio.
E agora, o que seguir, pensava. Se não podia vir a ser
doutor, por que não alfaiate? Profissão muito almejada na
época. Diria mesmo que alcançara certo status, a arte de
confeccionar roupas para homens. Entretanto, criança ainda,
teria de esperar a idade chegar.
Ajudava sua mãe no plantio e cuidado com a horta,
tapete verde, bordado com os raios do sol, forrando a
terra. Os canteiros de mudas ficavam separados, protegidos.
Cuidava também dos tomateiros e das sementes. Sabia que
em cada uma delas, outra vida seria reinventada. Outro
tomateiro surgiria do quase nada. Delas dependia a vida,
parte do seu sustento. Atmosfera de paz, quase palpável,
suspendia-se sobre aquele pedaço de terra. E ele abria
pequenas covas para fazer dormir as sementes. Aí esperava
o milagre da vida. Apenas a terra tinha o poder de fazer
viver e reviver. Sua alegria permanecia enquanto
contemplava o desenvolver da vida entre o plantio e a
colheita. Tinha carinho pelos tomateiros. Colocava estacas
para amparar o peso. Molhava os pés sem deixar que as
folhas molhassem. Um segredo que aprendeu com sua
mãe. Colhia as verduras, tomates que chegavam a dar água
na boca! Saía às ruas para vendê-los. Depois entregava o
dinheiro à mãe que sabia como distribuí-lo, segundo as
necessidades da família.
O pequeno regato que se movimentava nos fundos
da casa trazia frescor à horta. Natureza e perseverança no
trabalho caminhavam de mãos dadas, por isso, o fruto era
esperado.
Quando não tinha o que fazer, pensava no amanhã.
Futuro incerto, cheio de sombras, como nuvens que se
atravessam em frente à luz do sol para ofuscá-lo. A decepção
que tivera ao terminar o grupo escolar ainda mexia com
ele.
Tornou-se rapaz. Sentia-se como semente que se
transformara e hoje ela podia ser considerada um arbusto,
crescendo acima da terra.
Ficou sabendo por um amigo que estavam precisando
de ajudante numa alfaiataria. Resolveu que iria até lá pedir
que o aceitassem. Vestiu-se da melhor maneira que pôde e
se apresentou. Falou do seu sonho, do desejo, da vontade
de se tornar alfaiate. Pérolas de suor brotavam nas faces
lisas e morenas. O dono da alfaiataria ouviu-o pacientemente
e por alguns instantes ficou calado. Instantes que lhe
pareceram séculos. Finalmente, resolveu falar: gostei de
você meu jovem, está empregado.
Tinha ganas de vencer, vontade de criar, a arte estava
nas mãos, na mente, em todo o seu ser. Aquele emprego
era luz da aurora entrando em aposento escuro.
Começou como ajudante. Do trabalho de chulear,
alinhavar, embainhar, passou a pregar botões e fazer casas
nas peças que ficavam prontas. Elas pareciam bordado
feito à mão, de tão perfeitas! Depois começou a trabalhar
com entretelas, pespontar, cortar mangas de paletó e montálas.
A tudo observava. Queria sempre aprender mais. Na
profissão, era semente desprendida da casca, em contato
com a terra, esperando as águas para se transformar em
árvore.
Chegou a vez de fazer calças e em seguida, coletes.
Sempre de olho no alfaiate responsável, perguntando,
sanando dúvidas, aprendeu a riscar e tirar o molde do
paletó. Daí chegou ao corte da peça. Levou anos de trabalho
e perseverança. Para a semente se transformar em árvore,
também vai longo tempo.
Finalmente, conseguiu dominar o ofício de fazer terno.
Tornou-se o braço direito do dono da alfaiataria: riscava,
cortava, costurava, tirava prova, dava o toque final passando
com perfeição a peça a ser entregue. Chegou a substituí-lo
quando ele se ausentava. Sentia imenso prazer quando via
a roupa pronta no corpo do cliente. Era mãe árvore dando
o melhor de si, sombra e frutos.
Fazia-o feliz ser apontado nas ruas e apresentado com
entusiasmo para outras pessoas. No entanto, ele queria
mais, ter a própria alfaiataria.
A sociedade se vestia muito bem, até mesmo as
pessoas mais simples usavam terno. E haveria de criar ternos
para serem usados na manhã descontraída, em piquenique,
no trabalho diário, na noite, para político em eminência,
doutores, pessoas comuns e em momentos de gala.
De vez em quando se lembrava do prêmio que lhe
fora roubado, mas por força de vontade, hoje era doutor
nas artes de trajar o próximo.
Foi nesta fase da vida que conheceu o amor. Era o
sol inundando de luz o coração solitário. Todas as suas
aspirações estavam voltadas para a vida a dois. As próprias
sementes haveriam de frutificar.
Sentia que as árvores cantavam ao sopro brando do
vento de outono. A terra exalava frescor que chegava a ser
doce. Os jardins conservavam o verde-esmeralda enfeitado
de flores que lembravam o arco-íris. Neste momento ele
sonhou. No sonho, via todos os ideais serem concretizados
e neles, ela estava presente. Com a amada queria dividir as
alegrias, trabalhos e dificuldades.
Voltou à realidade, com a chegada dela no jardim
daquela praça e ali mesmo pediu-a em casamento. Ela
ficou feliz, queria compartilhar seus sonhos com os dele.
E, trocando carinhos, fizeram planos. Juntos construiriam
uma família.
Outra vez a vida haveria de lhe pregar uma peça.
Sua ligação com a pessoa querida foi tumultuada. O
preconceito falou mais alto. Por ser rapaz pobre, de origem
humilde, não foi valorizado pela família dela. No entanto,
a força do amor que havia entre os dois, conseguiu transpor
as barreiras e eles se casaram.
A esposa também sabia costurar. Aprendeu com ele
como fazer calças e coletes para homens. Ele cortava e ela
montava as peças. Tinha também o gosto pela costura e
tudo que fazia era com amor. Com sua ajuda, ele pensou
em trabalhar por conta própria.
Começaram, devagar, a comprar tudo o que
precisavam para uma boa alfaiataria: mesa grande para
cortar as costuras; uma tesoura francesa da qual cuidava
com orgulho, pois lhe custara muito caro; duas outras
tesouras menores, réguas, esquadros e papéis para moldes;
dois manequins para descansar as peças montadas; mais
uma máquina de costura de pedalar e um ferro a brasa;
também foram adquiridos cortes de casimira, tropical inglês
e linho S120, bem como metim e entretelas; algumas
miudezas necessárias como cera e giz de alfaiate, dedais e
botões diversos, linhas e retroses de todas as cores e
qualidades diferentes; caderno de capa dura para anotar
as medidas do cliente, outro para anotar as entradas e
saídas de dinheiro. Almofadinhas de espetar alfinetes e
para passar com perfeição as peças prontas, foram feitas
pela esposa. Ela já possuía caixa de costura e cuidava de
todo o material de trabalho com muito desvelo. Tudo
aconteceu devagar, com dificuldade e esperança, na certeza
de que dias melhores estariam por vir.
Deixou o emprego e começou a costurar em casa.
Logo a alfaiataria passou a ser procurada. O amor estava
em tudo o que fazia. Descosturava sombras da mente, na
esperança de que a roupa ficasse perfeita. Criava modelos.
A alma do artista vestia o manequim com paletós, jaquetões
e roupas a rigor. Jogava fora trapos de lembranças ruins
experimentando novas opções. Levava alfinetadas da vida,
não se importava, conseguira alcançar o objetivo, ser alfaiate
e trabalhar por conta própria. Chegava a dispensar
encomendas, pois a demanda era grande. Sua esposa
ajudava-o como podia.
A música sempre esteve presente em sua alma de
artista. Enquanto cortava as peças, cantava e a voz de
barítono enchia o ambiente de verdadeiro enlevo. Através
dela, afugentava medos e angústias. Apreciava as músicas
clássicas e o canto gregoriano. Enquanto pedalava a
máquina de costura, um mundo bom se descortinava à
sua frente.
Trabalhando com afinco, ele e a esposa conseguiram
construir a casa própria, pois até então moravam de aluguel.
E puderam com dignidade encaminhar os filhos para a
vida. Não tinham luxo, pessoas simples, felizes, realizadas.
O prêmio não lhe fizera falta. Fazia o que gostava e
sentia grande prazer naquilo. Era reconhecidamente o
melhor alfaiate do lugar onde moravam, aquele a quem
todos procuravam quando queriam roupa que lhes caísse
bem.
O lugar era pequeno e ele alcançara destaque entre
as pessoas de nível social elevado. Os filhos mais velhos, a
moça e dois rapazes tinham um núcleo bom de amizade,
eram sempre lembrados, todos queriam a presença deles
nas festas, piqueniques e reuniões de família.
A filha mais velha casou-se e foi morar na capital. O
segundo filho faleceu. Depois de tantos anos de trabalho
bem sucedido, querendo fugir à dura realidade da morte
do filho, resolveram mudar-se também para a capital.
Tinham o terceiro filho adulto, uma adolescente e duas
crianças em idade escolar.
Na cidade grande era muito diferente. As pessoas não
se conheciam, mal se davam bom dia, ele era apenas um
no meio da multidão. Já não tinha a freguesia, teria que
começar tudo de novo. Sentia-se como semente a ser
lançada na terra, esperar pelo ciclo da vida até tornar-se
árvore novamente.
Pegava paletós, calças e coletes nas alfaiatarias para
fazer em casa e ganhava por peça feita. O ganho era
pequeno, passaram por dificuldades financeiras.
Nos grandes centros, surgiram confecções com
máquinas elétricas para costurar, dar acabamento, pregar
botões, fazer casas etc. Elas trabalhavam com roupas em
série e vendiam para as lojas.
Ele passou a ser empregado de uma dessas
confecções, trabalhando com peças iguais em grande escala
e em tamanhos diferentes. Não existia mais o contato direto
com o cliente, a satisfação de ver o trabalho encher de
alegria aquele que o procurava. O que era obra de arte
passou a ser trabalho repetitivo, cópia fiel.
A facilidade de se provar roupa pronta fez com que
os fregueses fossem dando preferência às lojas que
mostravam nas vitrinas, vários modelos com tecidos e cores
diversas, vestidas em manequins.
Ele continuou trabalhando em confecções enquanto
os filhos cresciam.
O rapaz seguiu o caminho dos seus sonhos que era
diferente da carreira do pai. O seu vôo era bem mais alto,
com isso, ele o ajudava no sustento da casa. A segunda
filha também começou a trabalhar e já não lhe dava
despesa.
Como não conseguiu se submeter àquele trabalho
cansativo e sem alegria, largou o emprego. Ficou sujeito a
fazer uma ou outra encomenda que aparecia e alguns
consertos. Com pesar ele viu o trabalho de outrora, exercido
com tanto prazer e arte, ser extinto.
O alfaiate que vivia dentro dele ficou reduzido a
confeccionar peças para seus filhos. Depois vieram os netos,
sementes que cresceram, desabrocharam e que, aos poucos,
foram mudando os hábitos nas vestimentas, seguindo a
moda que hoje é tão diversificada. O terno deu lugar ao
blazer e à jaqueta. Ele próprio chegou a vestir o safári,
presente dado pelo filho, comprado em grande magazine.
Está agora no céu, semeando canteiros para Deus,
criando e costurando, talvez muito mais feliz! Com certeza,
as grandes confecções, que vieram para tomar o lugar do
alfaiate particular, privando-o de exercer sua arte, ainda
não chegaram por lá.