sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Chuleado, Eneida Machado Milet

CHULEADO:
Do Dicionário Houaiss
Chulear:
– (cost.) Dar pontos na borda de um tecido
cortado, para que não desfie.
– Ficar na expectativa de obter alguma coisa
muito desejada.

Campainha tocou, eu no telefone com dona Mariquita
Bicalho, tentando explicar diferença entre chuleadeira e
cerzideira. Velhinha teimosa, mandona, queria me virar
em cerzideira de qualquer jeito, para fazer remendo em
terno chique do neto que estuda em Belorizonte.
“– Dona Mariquita, sou chuleadeira, é diferente...
Cerzideira conserta roupa usada, quando rasga ou púi.
Chuleadeira arremata roupa nova, abre casas, prega botões.
Tem gente que faz as duas coisas, eu especializei só em
acabamento”. Pela janela vi Zulmira, fiz sinal que esperasse,
mostrando o telefone. Arrematei conversa com a dona,
assim meio brusca, fora do meu estilo: “– Olha, dona
Mariquita, procura a Daquinha do Ozório, serviço dela é
perfeito, garanto p’rá senhora. Fala que foi a Lina do Adão
quem indicou, tá?” Desliguei. Deve ter ficado fula. Faz mal
não, descer do trono vez em quando é bom treino de
humildade. Nem fiz por mal: estava era aflita com a Zulmira
me esperando. A gente se conhece, mas nunca teve
amizade p’rá visita. O que seria?
Queria era avisar que o Gilvan estava internado na
Santa Casa, onde trabalha de enfermeira.”Olha, Lina, falou,
meio sem jeito, vim aqui porque sei como você é caridosa
e o Gilvan não tem ninguém. Dona Valmira tentou contato
com família dele, no Abaeté, ninguém ligou. A ex continua
naquele destempero, os filhos cada qual mais descabeceado
– o único ajuizado mora fora do Brasil. Se você estiver
disposta, vai lá, visita, leva umas coisinhas. Precisando ele
está – você vai fazer grande caridade...”
Nem sei como me despedi dela, abobada com a
notícia. Pensando bem, era de se esperar: depois da
separação, anos atrás, voltou cá p’rá Bela Vista. Vivia de
pequenos serviços, o suficiente para sustento do quartinho
de pensão e bebedeira. Cruzei com ele duas semanas atrás,
mais magro, pulsos fininhos, queixo saliente. Devia estar
são, pois baixou cabeça e virou a primeira esquina. Estivesse
bêbado ia me seguir até perto de casa, como vinha fazendo,
sem jamais ter coragem de me abordar. Agora essa... Esperei
sexta-feira – dia de folga do doutor – e fui lá, fazendo de
boba, caçando consulta. Parece bobagem, esse disfarce,
mas no interior tomam conta da vida da gente, passo a
passo. Vivi sempre na reta, escapei das tentações p’rá manter
nome, depois de velha ia estragar tudo? Forcei encontro
“por acaso” com dona Valmira, pedi conversa particular –
nela eu confio. Séria e exigente, ganha de qualquer médico
na dedicação, deve ter nem tempo de ficar vigiando os
outros, comentando...
Me explicou o estado dele – cirrose hepática no último
grau, diabetes, talvez precisasse amputar pé... Fez lista das
coisas mais urgentes, na verdade o pobre não tinha era
nada – meias, cuecas, pijamas, chinelos... Sugeriu que eu
fosse vê-lo: “Não, dona Valmira, ia ser um choque para ele
e para mim. Depois, o povo fala demais... A família não
quer saber dele, mas se contam da minha ajuda logo aparece
alguém p’rá atrapalhar. Faço o que puder, mas estou
correndo de confusão e falatórios”.
Chegando em casa destampei na choradeira. Custei a
lembrar onde estava o bauzinho de couro, primeiro
presente, onde guardei tudo dele. Mãe queria que eu
devolvesse. Pai, mais sensato: “– Devolver como, Gini, sair
atrás de um fugitivo, caçar sarna p’rá se coçar? Guarda
tudo, em lugar bem escondido, espera acalmar, depois dá
um fim nisso”. Quarenta e um anos, foi o que esperei. O
cheiro é de coisa velha, mofo – “Coisa guardada demais
tem cheiro de defunto” dizia mãe. Defunto bem vivo, pelo
jeito. Não fosse, p’rá quê tanto choro? Lá estavam a aliança
bem larga como ele escolheu, o reloginho Tissot, correntinha
de ouro com medalha “Deus te guie”, anel com cinco
pedrinhas de rubi enfileiradas – vi na vitrine do seu
Gasparino: “Olha, Gil, parece romã, que lindo!” Fim do
mês me entregou caixinha de veludo – “Estão aí, tuas romãs.”
E um poema do Castro Alves, copiado a meu pedido –
”Teus olhos são negros, negros, como as noites sem luar...”
assim cantou em serenata na minha janela, depois do
primeiro encontro.
Primeira vez que a gente se viu, envinha eu descendo
da escola, dei com o rapaz bem na porta do Bar Marajá:
moreno bonito, cabelo esticado a brilhantina, calça azul
marinho, camisa de cambraia bege. Levava copo de cerveja
à boca, parou o gesto, me olhando, até eu dobrar a esquina.
Virou compromisso – todo dia me esperava passar. Primeira
conversa foi um custo, mas acabou acontecendo. Pai logo
soube, arrepiou:
“– Não quero saber desse namoro. Pau-de-arara saído
do nada, ninguém conhece, vai ver tem até família na terra
dele. Tira o cavalinho da chuva, mocinha. Cria juízo”. Mano
não deu trégua: “– Minha irmãzinha, tão lindinha, metida
a intelectual, quem diria, namorando caixeiro-viajante com
cara de galã da Pelmex”. Pelmex era companhia de cinema
mexicana, mestra em dramalhões, tipo essas novelas do
SBT. Salvava os filmes era a trilha sonora, cada música
mais linda que a outra – tangos, boleros e os intérpretes,
de primeira: Toña la Negra, Libertad Lamarque, Frei José
de Guadalupe Mojica, Pedro Vargas... Com o tempo mano
simplificou: olhava p’rá mim e cantarolava ou assoviava
“Solamente una vez...” Eu trincava de ódio. Nestor nunca
aceitou o Gil, nem quando consegui dobrar o pai.
“– Olha filha, vou respeitar sua escolha. Você nunca
trouxe aborrecimento p’rá nós. Seja em casa, seja na escola,
só tem dado satisfação. Por isso vamos dar uma oportunidade
ao rapaz”. Falou e cumpriu.
Começamos namoro oficial, no sofazinho da sala de
visitas. Pai vinha dar uma palavrinha, mãe ficava batendo
chinelo lá dentro, lá pelas nove horas servia cafezinho. O
sinal para encerrar era ela raspar garganta. Apaixonadíssima,
doía me separar do moço bonito, fala macia, enormes olhos
esverdeados. Pegou livro de poesia na estante, sem pedir
licença nem nada, lia p’rá mim naquela voz cantada, pura
música – “Espumas Flutuantes” – Castro Alves. Nestor tinha
o maior xodó com o volume encadernado de marrom,
trazido de umas férias na Estrela – história meio misteriosa,
nunca entendi direito: a primeira página tinha sido
arrancada, talvez por dedicatória e lá dentro, na margem,
nome escrito com letra bonita: Carlos Lúcio Caetano. Seria
roubado? Tozinho nunca mais quis saber do livro, tanta
antipatia do Gilvan.
Namoro ficou sério. Com dezoito anos fui pedida em
casamento, na maior cerimônia. Além da aliança ganhei o
reloginho de pulso, marca “Tissot”, verdadeiro luxo. No
mesmo dia, na despedida, Gil me pediu para largar os
estudos. Prometi parar no fim do ano – fazia o segundo
ano de magistério. Lembro da Veva passar na alfaiataria,
pedindo ao pai para não deixar, em nome dos professores.
“Menina inteligente, estudiosa, devia era de continuar
estudando”. Deslumbrada, muito nova, fiz cara feia e parei
mesmo. Arrumei enxoval completo, no maior capricho. Pai,
de tão entusiasmado, fez questão de abrir caderneta na
Casa Lacerda. “– Loja de rico, não sei a serventia de tanto
luxo”, era mãe, torcendo nariz. Mas bem que comprou
umas coisinhas para ela também e afinal me ajudou nos
preparos, naquela sem-graceza de sempre. Casamento foi
marcado para maio de 59. Em janeiro, lembro desse dia
direitinho, até da roupa: saia godê simples de failete marrom,
blusa cigana de seda verde, apareceu na nossa porta dupla
de homem – pai depois disse que estavam armados –
procurando meu noivo. Ninguém dormiu, tanto medo.
Ainda mais depois de não achar o Gil no hotel nem nos
outros cantos de costume. No outro dia, cedinho, a notícia:
pegaram ele no Bar Marajá, bem folgado tomando cerveja
e levaram a força p’ro Abaeté, casar com mocinha
desonrada por ele. A casa ficou pequena para tanta gente,
parecia romaria! Cada qual aproveitando a situação como
podia, saboreando novidade. Afinal o apurado foi isto: a
menina, e nem era tão menina assim, mais velha que eu,
falada, mimada, estava grávida. Gilvan tinha passado por
lá, a serviço, deu umas voltinhas com a moça. Pai dela,
fazendeiro rico, ignorante e poderoso, forçou barra e meu
noivo casou, mudou, sumiu... Fiquei no “ora veja!”,
humilhação danada. Pai falou em matar – ele já gostava
bastante do “pau-de-arara”. Veio gente propor tocaia, entrei
na sala chorando: “Pelamor de Deus, pai, deixa ficar como
está, eu ia lá ser feliz com um homem desse? Madrinha
Balbina reza tanto por mim, e se Nossa Senhora fez isso
por proteção? Não prestou como noivo, ia prestar p’rá
marido?” Assim ficou. Segunda vez que pai me ouviu e,
graças a Deus, nunca ele olhou com cara de “Não falei?”,
p’ro meu lado.
Depois a Das Dores da Fia veio com recadinhos, ela
ia muito no Abaeté visitar o avô. Cortei na hora: “Raça
ruim, hein, Das Dor, fui falando, valia mais era ter deixado
o pai passar ele na faca. Esse homem não vale é nada.
Vou é contar ao pai e ao sogro dele, ver o que acontece”.
Sumiu de novo. Mas nesse tempo eu já tinha reagido,
trabalhava no ateliê com dona Violeta, voltara meu gosto
pela leitura, pelos programas de rádio.
Logo que aconteceu, fiquei, como se dizia na época,
numa fossa das mais fedorentas – faço questão de não
lembrar nem comentar tanta tristeza. Só digo que enxergava
tudo cinza. Até mãe amoleceu. Lembro dela me levar ao
chuveiro pela mão, me ajudando a lavar cabeça.
Me ressuscitou foi madrinha Balbina, entrando no
quarto bem cedo, barulhenta, enchendo espaço, alta e
gorda, cheirando a cravo e erva-doce: “Cadê minha menina
de ouro?” Brincadeira de costume, por causa do meu nome.
Me chamo Esterlina e isso pesou muito na infância. Na
chatura da adolescência criei coragem: “– Pai, donde foi
que o senhor tirou a triste idéia de me por esse nome de
Esterlina?” Me olhou devagar, com a cara divertida: “Pois
senhorita Esterlina, nunca vi nome mais alegre. Ester, sua
avó materna, animava qualquer ambiente, todo mês
promovia hora dançante para os jovens. Lina, minha mãe,
vivia cantando – até caderno de músicas achou tempo de
fazer. Confesso ter tido um pouco de dúvida, antes de te
registrar, até que vi a manchete no jornal de um freguês: ‘A
libra esterlina foi considerada a moeda mais valiosa do
mundo’. Pronto, resolvi. Lembra d’eu te chamar minha
moedinha de ouro?”Comecei a aceitar e hoje tenho o maior
orgulho do nome escolhido com tanto carinho. Mas ainda
prefiro ser chamada de Lina. Parece mais comigo. Foi toque
de condão a madrinha chegar daquele jeito, abrindo janela,
rindo. Renasci para os barulhos da casa: passo preto
cantando, louça batendo na pia, tique-taque do relógio
grande. Senti cheiro de café.
“– Que tal você começar a trabalhar, hein, mocinha?
Dona Violeta Cardoso precisa de moça caprichosa, para
aprender a chulear roupas finas. Está disposta a ensinar
desde o começo, e pagando...” Na outra semana comecei
– conhecia o serviço, sempre ajudei mãe nos trabalhos de
mão, chuleei as roupas do meu enxoval. Mas fazer
profissionalmente, com gente avaliando, era muito diferente,
deu medo. Bobagem, logo peguei confiança e gosto – Dona
Violeta explicava tudo detalhadamente, desde a escolha
da agulha de acordo com o tecido até o jeito de dar nó na
linha, para ficar delicado e não aparecer. Também o ponto
“– Olha, Lina, o ponto deve ser sempre do mesmo tamanho,
na mesma direção, Chuleio tem que completar a roupa, a
freguesa deve ter gosto de olhar”. Ensinou a fazer casa,
pregar botão com firmeza, alinhavar fecho-eclair. Exigia
que a gente lavasse as mãos e secasse com cuidado, antes
de começar. Na bainha da roupa mandava costurar
rendinha, para disfarçar os pontos. Quem pelo menos pensa
nisso, hoje em dia? Mesmo naquele tempo, não era toda
costureira que tinha esse capricho, não. Agora ninguém
sabe mais essas artes. Minha sobrinha mesmo, chegou aqui
toda pimpona, sainha curta, sem o menor acabamento.”Dá
essa saia aqui, Norma, num instante eu capricho no
acabamento dela”. Fez foi debochar. “– Trem mais antigo,
mãelina, roupa de hoje não precisa acabamento não – os
panos não desfiam, ainda mais cortado a laser”. Tá certo,
as coisas mudam, quem segura o tal progresso? Progresso
nas máquinas, porque nas pessoas não vejo muito progresso
não. Aprendi, desde menina: progresso é melhoria. Cadê a
melhoria que não tô vendo? Vejo é gente aflita, correndo
de um lado pro outro atrás de não sei o quê – é um
remédio p’rá dormir, outro p’rá acordar. Se morre alguém,
acontece alguma tragédia, normal é ficar triste, tristeza e
sofrimento sempre vão existir. Às vezes dá vontade de
encostar num canto e chorar pelo menos uma semana.
Chora, desabafa e volta p’rá peleja, nossa sina é essa, uai.
Hoje ninguém pode mais ficar triste, tudo vira depressão e
lá vem doutor receitando a tal da fluoxetina. O ginecologista
receitou p’rá Angelina lavadeira e a velha tá num agito
difícil de aturar..., mulher séria, viúva há anos, arrumou até
namorado mais novo. Ontem pediu aumento, está
endividada, tanto presente para o moço – o último foi um
celular. É isso, o progresso?
Lembro da mãe, das tias: moíam no serviço de casa
sem sombra de preguiça, seguravam barra pesada: filharada,
problemas de família... De noite acompanhavam novela
de rádio fazendo serviço de mão – crochê, tricô, pequenos
consertos, cerziam meias – outra coisa que ninguém mais
conhece ou faz. Depois era rezar terço cochilando e cair
na cama. Dormiam feito anjos. Nunca ouvi nenhuma
reclamando ou caçando remédio de farmácia p’rá dormir.
No máximo algum chazinho de horta. Tia Rita, filharada,
aperto de todo lado, ainda achava tempo de consertar
roupas velhas para dar aos pobres. Enterrou três filhos,
morreu com mais de noventa, alegrinha, seca por novidades,
tecendo crochê para dar de presente aos filhos. Isso eu
chamo de progresso.
Agora, as máquinas: Primeiro veio o zig-zag – o pai
logo trocou minha Singer antiga por uma nova, cheia dos
trique-triques. Fiquei encantada: além do zig-zag fazia casas,
pregava botões, bordava. Eu já trabalhava com a Ção, dona
Violeta tinha mudado pro Belorizonte. Ia ao ateliê fazer
acabamento fino – apesar da novidade, as roupas finas
ainda eram chuleadas a mão – e levava era coisa para
fazer na máquina, em casa. Às vezes, até serviços de outra
costureira. Quando chegou o overloque, babau... acabouse
meu ganha-pão. Máquina impressionante, vai aparando
a sobra do tecido e chuleando ao mesmo tempo. Com
mínimo de treino qualquer pessoa manobra ela, não requer
arte nem ciência. Perdi o emprego, achei desaforo me
rebaixar. A munheca da Ção não ia manter meu salário,
podendo pagar o mínimo ou até menos a uma overloquista.
Me dispensou sem a menor cerimônia, nem direitos pagou.
Nestor ficou bravo, falou em reclamar na justiça, propôs
pagar advogado. Deixa, falei, trem mais aborrecido, briga
por dinheiro... Puxei o pai nesse assunto, morro de vergonha
de os outros ficar me devendo. Quem deve tem de pagar,
sem esperar reclamação. Ou não? Fiquei vingada na hora
que dona Carminha Malaquias resolveu voltar a fazer
roupas aqui na Bela Vista. Freguesona da minha antiga
patroa, encantada com o capricho do meu acabamento,
foi caçar costureira em Luz, desgostosa com a mudança de
dona Violeta. Quando resolveu aceitar a Ção exigiu meus
serviços. Estou ouvindo ela falar, naquela pose calma, voz
rouca: “Overloque nas minhas roupas, não, muito grosseiro.
Me chama a Lina do Adão alfaiate, para os arremates gosto
é dela!” Quem pode contrariar freguesa mão aberta, fazendo
média de um vestido por mês? A outra teve de calçar a
cara e me ligou: “– Lina, meu bem, estou precisando de
você p’rá me quebrar um galho!” Aceitei por consideração
a dona Carminha e por distração. Na verdade adoro esse
serviço: tesoura amolada, aparo as beiradas no capricho,
escolho linha e agulha – pois cada pano tem sua exigência:
tecido fino requer agulha fina, delicada. Se estiver rombuda
ou enferrujada, sai esgarçando os fios, um horror. Só de
pensar fico aflita. Depois as casas, se a roupa leva botões –
nas roupas muito finas ainda faço a casa à mão, como se
fosse bordado. Quase ninguém repara nisso, eu sei, faço é
para meu próprio prazer. Afinal, fora as necessidades da
família, só me ocupo das roupas de dona Carminha e das
meninas da dona Chiquinha. Essas me contratam por dia,
para fazer consertos, chulear vestidos, pijamas e camisolas
feitas pela costureira. Isso duas vezes por ano. Cobro
baratinho, vou mais é por amizade. Elas encomendam
quitandas, empadinha, olho de sogra, cajuzinho. Ou a gente
está comendo, rindo dos casos antigos ou acompanhando
a Célia na cantoria, enquanto eu costuro. Parece festa. Mas
fosse contar com meu trabalho para sustento, eu morria de
fome. Agradeço é ao padrinho Du, todo ano mando
celebrar missa por alma dele. Vejo direitinho ele falando:
“– Compadre Adão, precisa cuidar de aposentadoria,
deixar pensão p’rá comadre Geni, a gente tem de prevenir.
Já pensou ela ficar no desamparo, sem um ganho?” E não
falou uma vez só não, foi muitas! Pai ganhava bem, alfaiate
caprichoso, vivia cheio de serviço. Trabalhou uns anos de
aprendiz com vô Genival, depois abriu ateliê próprio, no
centro da cidade. “ADÃO ALFAIATES” – placa pintada de
verde, tesoura de um lado, carretel de linha com agulha
espetada, do outro. Sempre impliquei com “alfaiates”,
achava que tinha de ser “alfaiate”, p’rá combinar. A gente
não tinha luxo, mas nunca passamos aperto. Pai resolveu
escutar o compadre, mas antes de conseguir arrumar a
papelada a mãe se foi, enfarte fulminante. Quem acabou
aproveitando foi ele mesmo e eu. Finou entrevado na cama,
doença mais esquisita. Valeu foi o dinheiro do padrinho
Du. Lembro dele rir com carinha boa, quando eu falava:
“– Vou ao banco, buscar o dinheiro do padrinho Du”. Só
não dava p’rá pagar enfermeiro. Eu mesmo limpava, dava
banho, faltava ele morrer de vergonha. O mano quis ajudar,
mas ainda ganhava pouco, não aceitamos. Doloroso...
Cuidei dele cinco anos. Fui ficando cansada, emagrecida,
avoada. O doutor ainda complicou a situação:
“– Lininha, falou na maior intimidade, você precisa
descansar, tire uns dias de férias, adianta nada ficar assim.
Não sabemos quanto tempo seu Adão vai durar, melhor
reservar suas forças”. Arranjasse alguém para tomar conta
do pai uns dias – viajar, quem sabe uma fazenda sossegada,
podia contar com ele, até questão de dinheiro. Fazenda
sossegada era a dele mesmo, ainda hoje faz a festa lá.
Assustei, cabreira, mas confesso ter ficado alegrinha, lá
dentro de mim. Novidade alguém se importar assim comigo,
ainda mais chamando de “trintona sacudida” e “olha que
beleza de pele você tem, lisinha, macia...” passando a mão
de leve no meu braço, eu já com meus quarenta e dois...
Tivesse dado trela, podia ter sido até bom. Mas, esgotada,
há tanto tempo sem treinar com homem, nem pensei em
embarcar nessa. Tive foi medo, nunca mais consultei com
ele e quando ele vinha ver o pai eu sempre dava jeito de
chamar alguém de companhia. Posso ter perdido bons
momentos, por lerdeza e respeito humano. Medo de ficar
falada eu sempre tive. Além do mais, homem casado! Mas
não reclamo não. Tenho as meninas do Tozinho, faltam só
me colocar no andor. Até de avião já me fizeram andar.
Igual filho. A mãe largou elas com o pai, pequeninhas, foi
embora com cantor de ópera muito esquisito que apareceu
por aqui. Homem mais velho, dentes estragados... Duvido
que ela gostasse dele – fez foi usar a situação para fugir.
Gosto de falar nisso não, remoer tristezas me faz mal. Nestor
ficou um caco, deu de beber. Praticamente criei minhas
sobrinhas. E nem pude trazer elas p’rá morar comigo. Tentar,
eu tentei: trabalhava fora o dia inteiro, trazia serviço p’rá
casa e pai já estava dando sinais da doença... Mano só
resmungou: “– Lugar delas é aqui, porque a puta foi embora
meu lar não acabou”, engrossando a voz. Isso, bêbado.
São, conversava era com ninguém. Sorte era ser ótimo
contador, ia ao escritório quando bem entendia, fazia
serviço dele, ainda corrigia o dos outros. Sô Jarbas nunca
falou em mandar ele embora. Eu andava de roda, ia lá
duas vezes por dia, na hora do almoço e de noitinha, ver
se estava tudo em ordem, vigiar empregada, ensinar dever
de casa, limpar orelhas, essas coisas de mãe. Mãelina, é
como me chamam, agarradas comigo até hoje.
Com o tempo as coisas foram se encaixando –
estrumei o mano para fazer concurso do Banco do Brasil,
empregão naquela época. Acabou me escutando, agarrou
no estudo, passou de primeira. Foi mandado para longe,
mas ganhando bem, podia pagar mais de uma empregada
e professora particular. Descansei... Nunca mais bebeu nem
quis casar. Candidata não faltou, eu cá sei quanta moça
bonita, de família boa, deu de cima dele. As meninas e eu
é que saíamos lucrando, tanto presentinho e agrado...
Eu, depois do fracasso com o Gil, da tentativa do
doutor e mais uns que nem compensa falar, também
descrentei desse negócio de namoro. Outro dia veio a
Adelina minha amiga falar em viúvo amigo dela, de olho
em mim, dizendo que sou muito enxuta p’ros meus
cinqüenta anos. Imagina, já fiz sessenta! Concordo: pareço
mais nova por causa da pele – parece pele de índio. Pai
contava caso de bisavó dele, pegada a laço, mas muita
gente conta o mesmo caso, acabo duvidando. Agora, minha
pele e a das sobrinhas é mesmo diferente: lisinha, meio
suada, resistente, não resseca nem no frio de julho. Passo
mal e mal um sebo de boi nos calcanhares, p’rá não gretar,
e só. Já o mano é mais brancoso, puxou a família da mãe.
Quem vê pensa que é o mais velho, na verdade é o caçula.
Fiquei foi rindo do viúvo, quando Adelina deu o recado.
Bom saber que a gente não está jogada fora, mas sou
arisca. Já pensou dividir lençol com estranho nessa idade?
Quero lá homem mandando na minha casa, vigiando,
pondo ordem, reclamando? Sorte de casar nova não tive,
passei aperto demais criando as meninas, olhando o pai,
trabalhando. Agora quero é meu sossego!
Tozinho mesmo, às vezes acho nele vontade de morar
comigo, faço de desentendida Morou fora uns tempos, por
causa do banco. Uma vez, vindo de férias, reuniu as filhas
e eu, para contar da Marluce: Contou resumido, fugindo
de emoção – ela soube dele em Bocaiúva, onde ficou
muitos anos, foi procurá-lo. Conversaram, fizeram as pazes,
ele perdoou mas rejeitou proposta de volta. Ela mandou
presentes, jóias lindas para as meninas – para mim esse
colar de prata com a medalha milagrosa, coloquei naquele
dia e nunca mais tirei. Hoje manda correspondência de
cidadezinha da Itália, cartas engraçadas – conseguiu
cidadania italiana, por causa do avô, dá aulas de canto,
viaja, viaja. Passarinho, assim vejo minha cunhada,
passarinho que nunca aceitou gaiola... O mano também
acabou reconhecendo, nunca falou em separar oficialmente,
nem depois da lei do divórcio. Mas ele vive bem, depois
de Bocaiúva trabalhou aqui mesmo até aposentar. Mora
sozinho em sítio pertinho da cidade, dá até para ir a pé.
Caminhei muito por aqueles lados. Mudei de rumo depois
de topar conhecida senhora saindo da casa dele pela porta
dos fundos, retomando, tranqüilamente, a caminhada. Toda
noite capricho na sopa, ele vem jantar comigo, conversamos,
assistimos um pouco de TV – um dia, zapeando, parei em
novela mexicana: lá estava ela, plastificada, recauchutada,
fazendo papel de avó. Ele me perguntou: “– Essa daí é
quem estou pensando?” “– É, falei, Libertad Lamarque”.
Me olhou, olhos rasos d’água: “– Haja Pelmex p’rá nós,
hein, mana?” Fiquei quieta, sem saber se chorava ou ria...
Aí pelas dez horas ele volta p’ro sítio, parecendo adolescente
na moto nova, sonho tão antigo. As filhas, crescidas: Norma
mora aqui com marido e filhos, professora na Faculdade
de Letras; Margot, em Belorizonte, terminando curso de
medicina; Celeste Aída, a mais parecida com a mãe, faz
curso superior de música em São Paulo. Paixão dela é
piano, diz que vai especializar em Ernesto Nazaré. Gosta
mesmo é de viajar e namorar. Já visitou a mãe e cada vez
que vem de férias traz namorado diferente...
De repente, acordei: olha eu escrevendo! e com o
maior prazer. Mãe, se visse, havia de falar: “Agora sim,
estamos arranjados, a outra deu de escrever depois de
velha!” Já Yolanda, minha amiguinha de leituras, ia gostar.
Uma vez falou: “– Ô Lina, porque você não começa a
escrever?” Olhei desconfiada: “Tá debochando de mim,
Yôla?” “– Que deboche que nada, menina, você tem o
dom de contar histórias. Lembra do professor falar? “A
Yolanda escreve empolado, é bonito mas soa meio artificial.
A Esterlina escreve como quem fala, natural, sem dar
trabalho ao leitor...” Eu mesma fico babando com suas
histórias, vôo longe...”
Yolanda, viajamos juntas tantas vezes nos livros
prediletos: Charles Dickens e Érico Veríssimo. Sempre ela
conseguia novidades: o tio mandava de São Paulo, a prima
rica emprestava. Mais de uma vez, em plena aula, me passou
bilhetinho: “Arranjei um novo do Érico”. Era ler e comentar,
horas de prazer e sonhos. Me apaixonei pelo Vasco de
“Um lugar ao sol”, ela se identificou com a Olívia, de “Olhai
os lírios do campo”. Por muito tempo só assinava Olívia.
Pois aí está, Yolanda/Olívia, depois de quarenta anos sigo
seu conselho. P’rá desabafar, descarregar o peso: saudades
de você, do pai, da mãe, de madrinha Balbina, única pessoa
a me mimar nessa vida. Saudades da Marluce: “– Levanta
essa bunta da cadeira, Estelita, vamo dá umas folta”. Aquele
sotaque duro que copiou do avô, por charme... E guiava o
carro, feito doida, cantando alto, em alemão, italiano,
francês! Dor enorme de saber que Gilvan, meu Gil, morreu
em grande sofrimento e não fui capaz de ir vê-lo, por
covardia, traindo “Nuestro Juramento”: “si yo muero primero,
és tu promesa, sobre de mi cadaver dejar caer, todo el
llanto que brote de tu tristeza, y que todos se enteren de tu
querer...” Foi no ensaio para o baile de formatura: alguém
colocou na vitrola o Trio Los Panchos cantando essa música,
ele me olhou profundamente, como querendo confirmar o
pacto. Pegou minha mão e começamos a dançar, pela
primeira vez. Foi o momento mais bonito de minha vida.
Ele dançava bem, flutuamos pelo salão. Pois nem o enterro
acompanhei, Gil, por vergonha, respeito humano. Mostrei
p’rá ninguém meu grande amor por você. Pedi foi ao seu
Jorge, D. Yvone e a Adelina para irem, não queria ver ele
enterrado sozinho. Coragem tive só de pedir consentimento
ao Nestor para ele ficar no túmulo da família, senão ia
descansar em terreno emprestado da prefeitura. Mágoa
funda ao abrir envelope mandado por dona Valmira:
aliança com meu nome gravado, mecha de cabelo e um
retrato três por quatro, de uniforme, tirado pelo Zé do
Foto, para a caderneta de meu último ano de escola.
Semana que vem, vou lá, mando dar limpeza no
túmulo e gravar, embaixo do nome do pai, com letras
comuns, bem simples – Gilvan – como ele pediu seu
Gasparino para fazer na nossa aliança.
Novidade é que, junto com a dor, veio profundo
alívio. Acabou, essa história acabou. Continuei a fiel noiva
dele esse tempo todo, só agora entendi. Foram embora
com ele a mágoa, o medo, as esperanças. Meu doce Gil da
fala macia, maior vítima dessa história...
Pai, já doente, tocou primeira e última vez no assunto:
“– Filha, o que você pensa, agora, do moço, do seu paude-
arara?” Falei verdade: “– Perdoei há muito tempo, pai.
Tenho rezado por ele, penso se não fizeram ele de bobo.”
– “Pois eu não penso, filha, tenho certeza. Você faz idéia
das conversas de alfaiataria? Misael, então, sabe da vida de
todo mundo, dá até enjôo. Pelo que escutei, aquele tirano
farejou rapaz bonito, educado, culto, sem família, sem
dinheiro... Ninguém que punisse por ele. Forjou tudo para
limpar o nome da moça, já falada, namorando até homem
casado. Destruiu duas vidas sem grande resultado. Diz que
ela não respeita nada, é doença. Ele só tinha a gente, nós
ficamos lambendo nossa ferida e nem pensamos nisso.
Comadre Balbina foi a única a tentar defesa: – “Compadre,
precisava alguém procurar esse moço, conversar, saber a
versão dele dessa história. Se ele for moço direito como
parece, deve estar sofrendo demais!” Olhei meio irônico,
ela calou. Um gambá cheira o outro, pensei. “Maldade
pura, filha, ninguém tem direito de ficar julgando... Quando
enxerguei a verdade tive remorso, mas, sem dinheiro nem
prestígio político, a gente ia fazer era nada. Peço a você
para por pedra em cima. Esquece, perdoa, reza por eles
todos, seu coração é grande...”
Grande até demais, parece: me peguei toda faceira
hoje de manhã, caprichando no penteado para ir à padaria
buscar pão... O tal viúvo passa lá todo dia cedinho, toma
café, compra pão e quitandas, antes de ir p’rá fazenda.
Quem sabe?