Mãe de pegação, Cristina Agostinho
Desde mocinha, Da Glória ficava de zoinho e zovido
compridos no trabalho das véia da casa. Que isso já vinha
de berço. Bisavó, vó, mãe, era tudo parteira. Um dia sua
vó lhe disse:
– Óia, menina, eu vou te ensiná como é que faz. Cê
vai ser parteira. Seu zói tá indicando.
E explicou tudinho. O primeiro sinal pra saber se a
mulher tinha condição de ganhar o neném em casa, era
dando o toque. Se num deu dilatação, num cedeu nada,
aí já caça outras providência. Cada contração que vem cê
tem que saber se a mulher tá sentindo o cordão abrindo. Cê
tem que saber isso pra ser parteira. Da Glória ainda
perguntou:
– Será que vou ter coragem, mãe Dindinha?
– Claro que vai ter coragem. Tudo que a gente ensina
cê aprende!
O primeiro parto, ela fez com 15 anos. Sozinha,
sozinha. Chegou um vizinho chamando e dizendo que a
mulher tava incomodada:
– Da Glória, cê num é véia, mas hoje vai ser. Porque
vai ter de fazer o parto da minha muié.
Da Glória foi. Com muito medo, mas foi. Foi rezando
pelo caminho: Ô, Senhor, me ajuda! Não me deixa entrar
em apuro, não, meu Deus!
Quando chegou, foi logo fazendo toda a preparação.
Pediu pro marido: ferve tudo, ferve a tesoura, ferve o
barbante. Ferve tudo, pelo amor de Deus! E me dá uma
toalha limpa.Virou pra mulher e falou: ajuda aí, Maria, dá
força! Ajuda que primeiramente Deus, em segundo eu,
vamo te ajudar. O neném veio nascendo... ai, Senhor!...
sentiu um frio na espinha. Daí já sabia a medida do cordão
pra cortar: dois dedos fora do imbigo e depois mais três pra
cortar e amarrar com barbante. Três amarradinhas pro
sangue não sair. E pronto! Depois que passou, Jesus! Foi
muito louva-a-Deus! Aí, ó, pum pum pum, o pai soltou uma
porção de morteiro pra avisar todo mundo que o menino
tinha vingado.
Muita gente já louvou a Deus e a Da Glória. E é voz
corrente do povo do lugar:
– A parteira daqui das melhor, que quando ela faz
um parto, olha pra mulher e desconfia que nem ela nem
nenhuma parteira faz, ela manda correr pro médico e o
que ela diz aqui o médico lá diz a mesma coisa, é Da
Glória.
A vida toda foi assim. Quando ela pensava que não,
lá vinha um chamado. Já nos tempos mudernos, quem
louvou a Deus foi o Marquinho da pensão, moço instruído
que, ninguém sabe por que, deixou a cidade grande pra
morar nesse fim de mundo. A mulher dele já tinha feito
duas cesarianas, mas eles queriam um parto normal. Muito
estucioso, Marquinho leu tudo num livro chamado ‘Onde
não há médico’, e se preparou pra fazer, ele mesmo, o
parto em casa.
No dia, fez tudo direitinho. Botou água pra ferver,
mediu o tempo entre as contrações e... na hora agá, não
agüentou o tranco: não vou dar conta! Foi correndo pedir
arrego a Da Glória. Ela chegou, simples... pegou a luva,
botou o lenço na cabeça, pôs um cepinho encostado na
beira da cama, fez o rodilho com uma toalha branca e
mandou a mãe ficar de cócoras.
– Foi uma coisa mágica! – o Marquinho ficou
assombrado: desceu um anjo de luz ali, naquele momento.
Da Glória já perdeu a conta de quantas crianças
aparou. Antigamente fazia dois, três partos por mês: já tenho
filho de pegação com 30, 40 anos, que se eu vê hoje, não
conheço mais. Nenhuma mulher morreu. Nem antes, nem
durante, nem depois. Porque ela cuida o tempo inteiro da
mãe e do recém-nascido. Sua farmácia fica bem ali, no
quintal, onde tem remédio pra tudo. Pra ajudar o neném
nascer, chá de quiabo, que tem coisa que é pra escorregá,
né? Pro banho da parida e a esfregação, durante três dias,
ela pega folha de arruda, mastruz, palma e alfazema, soca
tudo com alho, mistura com um óleo e dá a massagem.
Essa é a receita pro lado de fora. Pra curar por dentro, só
tomando ‘xixi de neném’. Até o pai da criança toma esse
xixi, num sabe? Pois ele é feito de cachaça temperada com
ervas. As mesmas ervas usadas na esfregação mais
hortelãzinha, poejo, alevante e arnica.
– A cachaça serve pra desinflamar e as erva ajuda a
curar por dentro. Pra ficar bem apurada, é bom preparar
um mês antes do neném nascer. Tem gente que faz na
hora, mas num fica muito bom. Aí só bota alho, cominho e
um pouquinho de mel.
A sabença de Da Glória não pára por aí. Um mucado
de folha de arueira e caju pra fazer chá e banho é bom pra
uretra, rim, bexiga. Chá de coentro, folha de algodão e
jasmim, tranqüiliza o espírito. Folha da amendoeira, da
manga espada, tudo é remédio Tem coisa que remédio de
mato cura melhor que o de farmácia. No seu quintal,
novalgina, anador, é tudo nome de planta.
– Tretréqui, por exemplo, é erva boa pra febre, pra
gripe, resfriado. Até pra cólica. Boldo é pra fígado, pra dor
no estômago pra comida que faz mal. Alfazema num é só
cheirosa, é um santo remédio pra gripe, pra adulto e pra
nenenzinho. Romã é bom por dentro e por fora. Chá da
casca estanca hemorragia e chá da semente gargarejado
cura a garganta. Gengibre também é certeiro pra inchaço
de amidlas. E baga de mamona batida com óleo de rícino
é um purgante tiro e queda pra botar o que não presta pra
fora.
Da Glória sabe que leitura traz conhecimento, mas
não dá sabedoria. Ela fez o curso dado por Deus e tem um
baita orgulho de ter ensinado muita coisa pro médico do
posto de saúde:
– A diferença entre as parteira e os médico tá na
mão. Nós primeiro acarinha, faz massage na barriga da
muié. Eles não, já vem cutucando, furando e cortando
com os instrumento.
Em casa, Das Graça, a filha mais velha de Da Glória,
fez até curso de enfermagem e sabe fazer parto. Mas ela
num tem muita coragem, não, diz a mãe, que confia mais
na outra ponta da família. Das Dor, a neta, um tico de
gente, tá sempre de zoinho comprido no oficio da vó.
Quando vê Da Glória sair, a qualquer hora do dia ou da
noite, com a sua bolsa amarela de listras, é a primeira a
pedir pra ir junto. Já é de milho, né? Tá no sangue!
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