sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Revelações, Arthur Vianna

Não existe nada de novo, exceto aquilo que se esqueceu.
(Mademoiselle Bertin)

No porto de Santos, centenas de pessoas aguardavam a
chegada do navio. Da pequena janela redonda, rente à
linha d‘água, João Pedro Pires deixava as lágrimas caírem
a gosto. Não sentia tristeza. Mas o sentimento que tomava
conta de seu coração também não era de alegria. Há duas
horas ouvira o chamado para o desembarque e a terra
firme parecia ainda distante. Mantinha junto a si a mala e
o saco de roupas. No bolso interno do casaco, os
documentos e o dinheiro. Sua mente revia cada pertence.
Não, ele tinha certeza que não esquecera nada no beliche
que ocupara na terceira classe do navio. Foram 34 noites
dividindo o cômodo com outros 50 compatriotas. A
lembrança do velho que emprestara um ferro para que ele
pudesse desamarrotar suas roupas provocou-lhe um quase
sorriso. Ele agradecera a gentileza, mas o velho insistiu
tanto que João Pedro não teve outro remédio se não aceitar
e agradecer. Pois não é que, mesmo sem brasa, o ferro
conseguiu dar um jeito na roupa que ele havia separado
para o desembarque? “O brasileiro coloca muito valor ao
bem vestir” – justificara o companheiro de viagem.
Como que em um passe de mágica, o navio já se
encontrava junto ao cais. João deixou o pequeno quarto
em que havia entrado à cata de uma janela e seguiu pelos
intermináveis e estreitos corredores do navio. Subiu as
escadas que levavam ao convés e sentiu o cheiro do Brasil
pela primeira vez. Era um cheiro diferente, quente. Na parte
de cima, os marinheiros gritavam indicando o caminho
para centenas de pessoas que surgiam por todo o lado.
Alguns levavam sacos enormes, outros uma pequena trouxa.
Os olhos de João Pedro ardiam com a claridade. Sem
entender exatamente para onde seguir, ele acompanhava
a corrente. A certa altura, a multidão foi se afunilando,
dando lugar a uma só fila.
De sua posição, já avistava os agentes da imigração.
Instintivamente colocou a mão no bolso para, mais uma
vez, certificar se lá estavam os documentos que recebera
das autoridades brasileiras em Lisboa. Sim, estavam lá. E,
ao chegar a sua hora, João Pedro Pires abriu o lenço e
entregou os papéis ao oficial que estava sentado. O
brasileiro deu uma rápida olhada nos documentos, ficou
com um papel e bateu o carimbo no outro, devolvendo-o
ao agora mais novo imigrante português no Brasil. Só
naquele ano de 1910, soube mais tarde, cerca de 30 mil
compatriotas haviam escolhido o Brasil para nova morada.
Assim como seus companheiros de viagem, foi levado
até a Estação e lá embarcou no trem em direção a São
Paulo. Na capital paulista, seguiu direto até a Hospedaria
de Imigrantes do Brás, onde teria direito a comida, cama,
atendimento médico e ainda auxílio na busca de uma
colocação. Filho de pobres camponeses da região de
Penalva do Castelo, próximo a Viseu e junto ao Rio Dão,
ele não teve muitas oportunidades de freqüentar escolas.
Mas, graças à sua mãe, aprendera a ler e escrever ainda
bem cedo. Todas as semanas, João Pedro acompanhava
sua mãe de Trancozelos até Penalva, onde ela entregava
os cestos que trançava em casa. Enquanto ela conversava
com os negociantes e fazia as compras, o menino aprendia
o bê-a-bá na Igreja da Misericórdia.
Em seu primeiro dia de Brasil, João não saiu da
Hospedaria. Ficou lá, conversando com outros imigrantes
e olhando a cidade pelas janelas da imensa construção,
capaz de abrigar até quatro mil estrangeiros.
No grande salão de entrada havia vários jornais e
revistas. João Pedro pegou o Correio Paulistano e, ao ler a
primeira notícia, sentiu correr pelo corpo uma sensação
gostosa de felicidade e esperança. A sua reação tinha uma
explicação: mesmo longe de sua terra, estando em outro
continente, ele conseguiria ler e falar a única língua que
conhecia além do minhoto. E assim, sem piscar, leu todas
as notícias e todos os anúncios. Antes de ir para a cama,
levou consigo vários exemplares de revistas e jornais
brasileiros.
No dia seguinte, João Pedro começou a consultar as
possibilidades de emprego oferecidas pela Hospedaria. Não
eram poucas, mas a grande maioria o levaria de volta ao
campo, para o trabalho na lavoura ou na pecuária. Ele
gostava do campo, mas o que levou aquele rapaz de 19
anos a deixar Portugal havia sido exatamente a vontade
de mudar, deixar os tratos com as ovelhas, os cuidados
com a roça e o trabalho na fabricação de queijo. Para ele,
o melhor seria um balcão de loja ou mesmo um lugar na
indústria. E, claro, nada disso deveria faltar numa cidade
de 250 mil habitantes como São Paulo. Mas o que ele não
sabia era que o setor de empregos da Hospedaria já tinha
um plano para os portugueses chegados de véspera.
Ninguém era obrigado a aceitar o emprego oferecido, tinha
explicado o funcionário, mas o objetivo era aproveitar a
experiência de cada um em seu país de origem.
João Pedro resolveu encarar a situação e perguntou
se poderia aguardar uma outra colocação. Foi atendido e
lá ficou até completar oito dias, prazo fatal para manter
cama e comida por conta do Departamento de Terras,
Colonização e Imigração do Estado de São Paulo. Durante
o período, aproveitou para pesquisar, primeiro o entorno
da região e depois pela cidade afora. Quando encontrava
um estabelecimento comercial no jeito, entrava e perguntava
se precisavam de empregados. A procura era tanta que
algumas lojas colocavam do lado de fora o desagradável
Não há vagas. Nem sempre era fácil sair da Hospedaria,
sendo preciso comprovar a busca de emprego.
No chuvoso dia 8 de março João Pedro Pires foi
chamado à Administração. Com uma carta de
recomendação do Governo do Estado, João Pedro deixa a
Hospedaria de Imigrantes do Brás. De sua já diminuta
bagagem, faltavam dois pares de calças e um chapéu preto,
este último presente de seu avô Feliciano. As roupas
simplesmente sumiram. Mas ele acrescentou a seus
pertences uma revista brasileira, editada no Rio de Janeiro.
Na revista Fon-Fon, um anúncio chamara a atenção do
português:

Ganhe dinheiro sem patrão, sem horário
e trabalhando ao ar livre
Adquira uma Máquina de Fotografar e Revelar
(modelo Bernardi)
A maravilha do Século XX
.......................................................
Naquela tarde de abril de 1964, Pedro Pedra descia a
Cristóvão Colombo em direção a casa de seu avô. No
quarteirão do Supermercado ServBem deu de cara com o
Vlady, que apontou para dois caminhões carregados de
bananas que passavam pela praça e emendou:
– Olha só, Pedro, os latifundiários do interior já estão
pagando o quinto aos gorilas de Brasília.
– É verdade, companheiro. Perigoso é a gente
escorregar nas cascas que eles irão espalhar pelo país afora.
E seguiram os dois até a banca do Benito. As
manchetes começavam a mudar de tom. E algumas até de
cor. Quase que já dava para comprar de novo o velho JB.
Depois de apoiar abertamente o golpe, os jornais
começaram a entender o que é ordem unida. O Última
Hora, a grande exceção, já havia sido empastelado.
Pedro voltou cedo pra casa. E mais pensativo do que
nunca. De cima do armário, retirou sua mala de couro
colocando-a sobre a cama. Com a papelada da militância,
livros agora proibidos e algumas recordações de sua recente
viagem ao Uruguai, tirou para fora a bolsa azul que ganhara
de seu pai. Colocou a mala de volta e deitou na cama.
Com a bolsa nas mãos, fechou os olhos e começou a
pensar se teria mesmo coragem de assumir seu sonho de
vestir uma camisa listrada e sair pelas avenidas do mundo
como fotógrafo de rua. Nem tanto pela ditadura, dizia para
si mesmo. Afinal, em relação a outros companheiros, a sua
situação era até confortável. Nas poucas vezes que estivera
no DOPS, na Avenida Afonso Pena, os interrogatórios não
duraram mais que algumas horas. É verdade que chegara
a ser indiciado em um único IPM, instaurado para apurar
atividades tidas como subversivas no meio estudantil
secundarista de Belo Horizonte. Pedro nunca soube se os
milicos não descobriram mesmo nada ou se houve uma
mãozinha de seu tio, conhecido major da repressão.
Quando estava quase a adormecer sua mãe bateu na
porta do quarto e falou que havia alguém lá fora querendo
falar com ele.
Ao pé da escada, o poeta que Pedro havia conhecido
poucos dias atrás na Cantina do Lucas. Naquela noite, depois
de algumas cachacolas e um delicioso frango à Cubana,
“seu” Olympio apresentara-lhe um amigo de infância,
“comunista como eu e excelente repentista” – acrescentou
à guisa de apresentação.
Depois de agradecer e recusar o convite para entrar,
Herculano entregou o que havia prometido no bar: nome
e endereço de uma pessoa que poderia recebê-lo na
Alemanha.
De volta a seu quarto, Pedro Pedra colocou o precioso
papelzinho na bolsa azul, junto com a Polaroid que o avô
lhe dera de presente.
.......................................................
Por sugestão de um imigrante espanhol, que tinha
conhecido num café próximo da Hospedaria, João Pedro
decidiu ir de bonde até o Largo de São Bento. Um detalhe
que ele não via a hora de contar para seus parentes em
Portugal: o bonde era elétrico e não puxado a burros. Mas
logo se lembrou que um rapaz de Penalva já havia visto e
até utilizado um transporte elétrico em Lisboa.
Seu destino era uma rua próxima ao Largo de São
Bento. Segundo dizia o anúncio da revista Fon-Fon, que
ele trazia consigo, a Casa dos Photografos situava-se à Rua
Florêncio de Abreu, 17. Como ele já havia trocado os contos
portugueses pelos contos de réis brasileiros, pagou os 200
réis ao condutor do bonde sem saber se era caro ou barato.
Caro mesmo era o preço da máquina que ele iria conhecer
e, quem sabe, comprar.
Exatos 50 dias depois de João Pedro descer do bonde
no Largo de São Bento, a casa de dona Maria das Graças
Pires era uma festa. Parentes e vizinhos, convidados ou
não, sentaram-se à volta da mesa para saber, de viva voz,
as notícias do Brasil.
Minha querida Mãe:
Peço desculpa por só agora escrever. São tantas as
coisas que tenho para contar que vou começar pelo
final, pois sei que a Mãe quer saber se eu já estou
empregado e se tenho me alimentado bem.
Para a primeira pergunta, tenho a dizer que já tenho
trabalho. Veja mãezinha que acabo de comprar o meu
próprio emprego. Trata-se de uma máquina
fotográfica e eu vou ser fotógrafo no Brasil. É uma
máquina muito complicada, mas tenho todas as
informações. Com ela posso ir a qualquer lugar e fazer
retratos às pessoas. Não é nada parecido com o que
existe na cidade do Porto ou mesmo na Capital. A
máquina tira a foto e ainda calha que posso entregar
a fotografia poucos minutos depois. Depois eu explico
direito como ela funciona, pois tenho ainda de ler e
aprender.
Estou em São Paulo, uma cidade que é quase a metade
de Lisboa. Graças à Mãe e ao padrinho, o dinheiro
tem chegado. Então não comprei a máquina de
fotografar? No Brasil, querida Mãe, a moeda tem o
mesmo nome, mas o seu valor é diferente. Aqui
também é tudo mil-réis e contos.
Agora, eu gostava de contar à Mãe a maior das
novidades. Vou sair de São Paulo e vou morar para
outra cidade do Brasil. É uma cidade tão nova que
não tem nem 20 anos de idade. Veja a Mãe. Na loja
em que eu comprei a máquina fotográfica havia um
armário cheio de fotografias. Na prateleira de cima,
cinco retratos da cidade de Belo Horizonte. Como os
retratos estavam escritos em francês, pedi ao caixeiro
para as traduzir. Foi ele quem me falou sobre a nova
capital do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte. As
fotos, chamadas Bilhete-Postal, foram impressas para
mostrar aos imigrantes uma nova possibilidade de
residência e trabalho. Como a cidade ainda está a ser
construída, pensei que lá teria maiores oportunidades
do que numa cidade grande e cheia de imigrantes
como São Paulo. A Mãe não concordaria comigo?
Aqui estou eu, com uma máquina fotográfica ao pé
da cama e a passagem já comprada para Belo
Horizonte. De Portugal, tenho...
Dona Gracinha limpou os olhos com o lenço já
encharcado de lágrimas. Enquanto alguns pediam para ela
continuar a ler até o final, outros, recém chegados,
suplicavam para que a saudosa mãe retornasse ao início.
Do outro lado do mundo e muito antes da carta chegar
a Trancozelos, João caminhava em direção à Estação. No
dia anterior, ele havia levado o imenso pacote e lá
depositara a máquina no armazém. Difícil havia sido dormir
naquela noite, sabendo que todo o seu futuro estaria lá na
Estação, entre caixotes e baús. Mas assim o aconselhara a
senhora dona Amanda, da Pensão Estrela de Davi. Ainda
bem, suspirou aliviado, é que a Estação do Norte, de onde
partiria em direção a Belo Horizonte, ficava ali mesmo no
Braz.
No vagão de segunda-classe, ele chegou a fazer um
cálculo de quantos cestos e quantos queijos seriam
necessários para chegar àquele imenso valor. Sim, toda a
família o ajudara. Até mesmo alguns comerciantes, que
chegaram a adiantar valores de compras futuras. João viu
passar uma nuvem em seu coração e seus olhos ficaram
rasos d´água. E se nada desse certo, pensava. E se a
máquina não funcionasse como garantira o vendedor? E
se ninguém gostasse de tirar retratos em Belo Horizonte?
Eram tantos os ses que, de soluço em soluço e apesar dos
balanços e da poeira de carvão, acabou dormindo e
sonhando com o melhor dos mundos.
.......................................................
Na cabeça de Pedro Pedra a decisão já estava tomada.
O momento, agora, era iniciar os preparativos. E, entre
eles, conseguir dinheiro para comprar a passagem e ainda
um troco para os primeiros dias de Europa. Pedro pensou
no que poderia vender. Bobagem. Ele não tinha nada de
valor que pudesse dar uma contribuição substancial ao
projeto. Então, concluiu, o negócio vai ser passar o chapéu.
Dos amigos, nem pensar. Boa parte deles andava à volta
com os tais inquéritos que a ditadura impingia a torto e a
direito. Ainda vai acabar sobrando para mim, disse Pedro
a seu primo Abdalla após assistir uma sessão no Cine Pathé.
Os militares já haviam ocupado todo o espaço possível.
Nas empresas públicas, mandavam os coronéis. Nos jornais
e revistas eram os tenentes que ajudavam os diretores a
praticarem a vergonhosa censura prévia. E na presidência
da república, através de um simulacro de eleição, colocaram
um general estrelado. Os antigos companheiros de Pedro
andavam sumidos. Alguns, como o Zé Maria, já haviam
pulado fora. Outros continuavam na ativa. Isto é:
respondendo aos processos, mas indo dormir em casa. A
situação, no entanto, era de cuidados. O regime apertava o
cerco e as notícias de mortes e desaparecimentos começaram
a surgir à boca pequena. Antes do final do ano, os milicos
retiraram todas as máscaras: dissolvem os partidos e retomam
as cassações que haviam iniciado logo após o golpe.
Não foi assim tão difícil conseguir o equivalente a mil
dólares. Para Pedro, a quantia era mais do que suficiente.
Para espanto de todos da família, o agora tenente-coronel
Enéas havia contribuído com nada menos do que 200
dólares. Pedro recebeu as quatro notas novinhas em folha
do tio torto, imaginando que o dinheiro seria para mantêlo
fora do ar. O restante foi conseguido dentro de sua
própria casa. Seu pai, mesmo com todas as dificuldades,
acabou por conseguir, talvez através de um empréstimo, a
maior parcela.
No dia 21 de novembro de 1964, Pedro coloca a sua
mala na parte de trás do jipe de seu pai. De óculos escuros
estilo Ronaldo para ninguém ver os olhos vermelhos,
despede de sua antiga babá e dos seus três irmãos que
ficariam em casa. A mais nova sorria como se Pedro
estivesse indo para uma festa logo ali na esquina. É verdade
que o irmão viajante havia lhe prometido trazer uma boneca
que anda e fala. Já sua outra irmã, que iria acompanhá-lo
até a Pampulha, tinha um semblante fechado. Ela sabia
que essa nova viagem de Pedro poderia não ter volta.
Quando chegou ao sagüão do aeroporto,
acompanhado dos pais, uma surpresa. Incluindo seu avô e
padrinho, lá estava boa parte de sua família. Na despedida,
sua irmã entrega-lhe um embrulho: é um caderninho para
você ir anotando o seu diário, explicou. Pedro, chorão de
marca maior, agüentou firme até tomar seu lugar na
poltrona do Convair da Varig.
.......................................................
O susto não poderia ter sido maior. João Pedro foi
jogado para frente e ainda recebeu um pacote na cabeça.
Abriu os olhos imaginando ainda estar no navio que o
trouxera ao Brasil. E pior: o barco estaria soçobrando.
Mesmo tendo sido educado para nunca dizer palavrões,
ele soltou um sonoro ó cabrão. Com a súbita parada e sem
saber o que estava acontecendo todos os passageiros
colocaram-se de pé no vagão. João procurou se recompor
e perguntou ao vizinho se já haviam chegado a Belo
Horizonte. O dito, em alto e bom som, provocou uma
enorme risada de todos. E assim ficou sabendo que
faltavam entre 20 e 30 horas para chegar à nova capital de
Minas Gerais.
A cidade de Guararema, ainda no estado de São
Paulo, era a primeira parada de café da longa jornada.
Antes de descer para esticar as pernas e talvez comprar
alguma coisa para comer, João Pedro entregou e recebeu
de volta o bilhete da viagem, picotado pelo sisudo chefede-
trem. Já na estação, aproveitou para ler o cartaz com as
próximas paradas e seus horários. A cidade de Belo
Horizonte não constava, mas ele já havia sido informado
que teria de mudar de trem em Barra do Piraí, no estado
do Rio de Janeiro. De lá, seguiria até Queluz, onde teria de
pernoitar e pegar ao meio-dia um outro comboio até o seu
destino. Meu destino, pensou com seus botões, sentindo
aquele friozinho na barriga. Mas, ato contínuo, seus
pensamentos fizeram voltar os ponteiros até a sua terra e
sua gente.
No calendário da cozinha, dona Gracinha ia riscando
os dias passados desde a partida do filho. Era sempre a
sua primeira tarefa do dia. Naquela sexta-feira, 23 de
setembro de 1910, um misto de alegria e apreensão tomava
conta de todos. Chegara mais um mimo de João Pedro.
Antes de abrir o volumoso envelope pardo, dona Gracinha
deixou cair seu olhar nos selos da República dos Estados
Unidos do Brasil. Ela parecia procurar nas estampas dos
políticos brasileiros respostas de uma mãe aflita. Como
estariam tratando o meu menino...
Querida Mãezinha:
Já lá se vão seis meses desde que sai de Portugal. Podia
pôr-me a escrever horas e horas sobre cada pedaço que
deixei em Portugal. Sei que não posso fazê-lo. Vamos,
pois, às novidades, que são muitas e, graças a Deus,
bastante positivas.
Fiquei a dever uma explicação sobre a máquina de
tirar e revelar retratos. Depois de ler e reler toda a
papelada, acredito estar pronto para tirar dela o meu
sustento.
A máquina não é grande, parece um caixote de
damasco. As laterais são de vidro, para que eu possa
mostrar as minhas melhores fotografias, para
chamariz. Ela fica em cima de um tripé articulado.
Por trás tem um grande pano preto que protege os
negativos e os produtos químicos do sol. Lá dentro,
querida Mãe, eu tenho um verdadeiro laboratório
fotográfico. Em poucos minutos posso entregar a
minha arte no tamanho de 9 x 12 centímetros, como
aquele Bilhete Postal que lhe enviei quando estava em
São Paulo.
A viagem de São Paulo para Belo Horizonte foi uma
verdadeira aventura. A Senhora não queira imaginar
como é grande o Brasil. E veja que, para os brasileiros,
Belo Horizonte fica perto de São Paulo! Pois foram dois
dias e duas trocas de comboio entre as duas capitais.
Felizmente havia paragens e, assim, pude
experimentar várias iguarias locais. Chequei a provar
a bebida da terra, forte, parecida com a nossa
bagaceira mas feita a partir da cana-de-açúcar.
Sei que todos querem saber como é a cidade que escolhi.
Pois Belo Horizonte não se parece com qualquer outra
cidade, nem de Portugal e, acredito que nem mesmo
do Brasil. Imagine só uma cidade construída
especialmente para ser capital. Quando desci do
comboio na Estação de Minas e olhei para fora do
prédio não acreditei. O espaço da praça era enorme.
Peguei um transporte de aluguel, carro de duas rodas
e dois assentos, com capota e puxado por um só
animal, e entreguei ao condutor o endereço da pensão
recomendada.
Pelo caminho, o primeiro contato com a cidade. O
tempo estava firme, com muita luz (agora, como futuro
fotógrafo, eu só devo pensar na claridade). A pensão
fica do outro lado da cidade. E as ruas são tão largas
que tudo aqui parece mais distante ainda.
Demonstrando conhecimento, o condutor foi falando
os nomes das ruas, avenidas e praças. Confesso que,
às vezes, eu não percebia o que ele estava a dizer. Na
Praça da República, já próximo à Pensão, passamos
pelos prédios da Faculdade de Direito e da Câmara
dos Deputados.
No primeiro dia, ao ver poucas pessoas nas ruas,
cheguei a duvidar do sucesso da minha empreitada.
Mas, depois, descobri que a nova capital de Minas é
uma cidade grande e populosa. O condutor garantiume
que a população atual de Belo Horizonte chega a
33 mil almas.
Deixo-lhe minha nova morada: Pensão Juventus, Rua
dos Aimorés, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. É
um local bastante movimentado e até chic, como
diriam os imigrantes franceses. A Pensão fica na
mesma rua da Prefeitura Municipal e ao pé da Igreja
Nossa Senhora da Boa Viagem, padroeira de Belo
Horizonte.
Agora, a grande novidade que reservei para o final.
Já estou a trabalhar. Eu não poderia ter escolhido uma
cidade melhor do que Belo Horizonte para exercer o
meu ofício de Fotógrafo de Jardim. Sim, pois enquanto
em São Paulo há retratistas por todas as praças e
parques, aqui ainda não encontrei um só. Claro que
existem vários e bons fotógrafos na cidade, mas todos
eles trabalham em suas próprias oficinas ou produzem
suas chapas por encomenda das repartições ou das
grandes companhias comerciais.
Assim que me instalei e comecei a fazer experiências
com a máquina fui procurar os fotógrafos que
trabalham em Belo Horizonte. Para minha surpresa,
fui muito bem recebido por todos. Talvez pela minha
juventude e pelo respeito que demonstrei aos mestres.
E conheci fotógrafos já estabelecidos há anos na
cidade, como Estêvão Lunardi, que me mostrou uma
série de postais que está fazendo sobre a capital. Já
com o fotógrafo e pintor Olindo Belém, conheci uma
técnica que, um dia, pretendo aprender: ele colora as
suas fotos, deixando as imagens exatamente como as
vemos ao natural.
Mesmo sendo uma cidade de grande porte, com quatro
salas de projeção de filmes e dois teatros, Belo
Horizonte tem uma característica muito especial. O
relacionamento é fácil, em especial com os imigrantes
italianos. Corre uma anedota que há na cidade mais
estrangeiro do que gente...
Depois de andar pela cidade e examinar os locais
principais onde eu poderia montar a minha máquina,
escolhi a Praça da Liberdade. Com o Palácio
Presidencial e suas Secretarias, a Praça da Liberdade
tem a mesma importância do Terreiro do Paço de
Lisboa. O movimento na Praça da Liberdade é grande.
Da parte da manhã recebe os miúdos, à tarde é a vez
dos altos funcionários. Aos domingos, as famílias e os
namorados.
Mas o que estou aqui a fazer ao escrever sobre a cidade
e seu povo? Melhor do que as letras que ora envio
seguem junto a esta as minhas primeiras fotografias.
Ainda estou a treinar, mas, pelos retratos, a Mãe e
todos aí em casa poderão conhecer melhor a cidade
que vosso filho escolheu para viver. Numerei todas as
fotografias, menos uma. Na primeira sou eu. Nela, pode
ver como trabalho todos os dias de chapéu e fato
completo. Foi tirada no Parque Municipal de Belo
Horizonte. Ao fundo, uma das mais belas edificações
da cidade, o Palacete dos Correios.
Nas demais fotografias...
.......................................................
Tudo segue nos conformes, pensou Pedro Pedra ao
descer do trem na Estação de Neustadt, na região da
Weinstrasse. Depois de passar sem problemas pela
imigração e alfândega no aeroporto de Frankfurt, consegue
tomar um ônibus até a estação central. Mesmo sem qualquer
familiaridade com a língua alemã, as indicações eram claras
e foram seguidas sem problema. Foi até o guichê de turismo
e pegou um mapa da cidade.
Com a mala na mão e a Polaroid a tiracolo, Pedro
deu mais uma espiada no endereço indicado e parou
defronte ao número 4 da Friedrichstrasse.
Pelo interfone, uma voz com aquele inconfundível
acento gaúcho identificou o visitante e fez abrir a porta.
No segundo andar, é recebido pelo dono da casa, que
pega a sua mala e o conduz a um espaçoso quarto. Matando
a curiosidade do brasileiro, o alemão explica que morou
muitos anos no Rio Grande do Sul e que mantém estreito
contato com inúmeras associações do Brasil. Só então Pedro
fica sabendo que o seu anfitrião é um pastor luterano. A
conversa, regada ao legítimo vinho da região, durou até o
último galo cantar na madrugada do dia seguinte.
Pedro explicou seus objetivos e o pastor suas
limitações. Mas Pedro podia ficar tranqüilo, insistiu o
alemão. Até conseguir ganhar os marcos necessários ele
teria cama e comida. A comida poderia ser lá mesmo, mas
a cama, por uma exigência da congregação, teria de ser
em outro local. Amanhã vamos lá conhecer sua nova casa,
brincou o pastor levantando mais um brinde à resistência
antifascista brasileira.
Pedro Pedra quase não conseguiu dormir. Também
pudera. O poderoso sol de inverno inundava todo o
aposento, entrando sem cerimônia pela imensa janela sem
cortina. Lá pelas tantas, já ouvindo certo rumor, Pedro
levantou-se e foi chegando meio sem jeito na grande área
que conjugava copa e cozinha. O apartamento era todo
branco e franciscano seu mobiliário.
Saudado com um verde-amarelo bom-dia, Pedro
arriscou um sonoro guten Morgen. À mesa, o pastor explicou
como e até que ponto poderia contribuir na permanência
do novo amigo em Neustadt. Ao agradecer, Pedro
comunicou que seria por um breve período. Sua intenção,
explicou, era chegar até Berlim e ali tentar ganhar a vida.
Após um café-da-manhã reforçado, Pedro foi levado
até sua primeira morada em terras germânicas. Para seu
espanto, o pastor havia parado defronte a uma graciosa
igreja e, ao apontar para uma de suas duas torres, informou:
lá será o seu ninho em Neustadt. De volta ao apartamento
para pegar a mala, Pedro ficou conhecendo um pouco da
história do lugar onde iria viver e, na primeira oportunidade,
anotou em seu caderno: A Igreja da Doação, em alemão
Stiftskirche, começou a ser construída no ano de 368, mas
suas torres, inclusive a minha, só ficaram prontas em 1489.
Em 1707 aconteceu uma coisa única e curiosa: a igreja foi
dividida em uma parte protestante e a outra católica. Hoje,
na mais perfeita harmonia, convivem pastores e padres.
Lado a lado, cada um com o seu rebanho. Na torre moram
ainda seis alemães: são chamados de “Tümer”, que em
português poderia ser traduzido por “observadores da torre”.
A função deles é descobrir início de incêndio e avisar aos
bombeiros.
E assim o belo-horizontino Pedro Pedra montou
barraca na torre mais famosa da região. Mais: a igreja é o
símbolo de Neustadt, que, apesar do nome em português
significar Cidade Nova, é mais velha do que a serra.
Já no segundo dia, Pedro retira do armário a Polaroid,
desce a longa escadaria e sai pelas ruas e praças da cidade.
O frio parecia congelar orelhas e nariz. A poucos metros
da igreja, avista um casal com duas crianças. Com as poucas
palavras que decorara num livrinho espanhol-alemão para
turistas, aproxima-se e oferece para tirar uma foto. Apenas
5 marcos, repetia o brasileiro em alemão. Sim, sim, gritaram
as crianças. Feita a pose, o único fotógrafo de rua naquele
duro inverno de Neustadt capricha, bate e vende a sua
primeira foto.